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Claudioeloi

Claudio Tadeu Daniel-Ribeiro ingressou no IOC em 1983, no então Departamento de Imunologia. Dez anos depois, assumiu a diretoria do Instituto. Considera uma honra ter ocupado cargo de tamanha importância. O membro das Academias Fluminense e Francesa de Medicina ressalta o privilégio de ter convivido com cientistas de destaque e o aprendizado obtido na convivência com os colegas. Discute educação e, ao recordar seu discurso de posse como diretor, lembra que a ciência deve ser feita por profissionais híbridos, movidos pela paixão e sensíveis ao compromisso.

“Lembrando em breves linhas a história do meu ingresso no IOC, para começar, eu falaria das tardes mágicas passadas na Biblioteca de Manguinhos, então no terceiro andar do Castelo Mourisco da Fiocruz, praticamente todas as tardes de quinta-feira de 1976. Eu tinha 24 anos e, interno de sexto ano de Medicina, saía do Hospital Gaffrée e Guinle para estudar e fotocopiar no Instituto Oswaldo Cruz os artigos sobre lúpus eritematoso sistêmico e febre reumática, assuntos pelos quais, influenciado por meus mestres do internato, Jacques Houli, Mauri Svartman e Omar da Rosa Santos, eu tinha quase paixão. Confesso que havia poucos outros momentos que me dessem mais prazer e me provocassem tanto entusiasmo. Como usávamos jaleco no hospital, dizer que me fascinava ver os cientistas de Manguinhos em seus aventais compridos é pouco, acho que eu imaginava que eles podiam voar...

Em setembro de 1977 mudei para Paris onde obtive meu doutoramento de Estado em Biologia Humana. Preocupado em continuar o trabalho científico de padrão compatível com a formação adquirida no exterior e em afiliar-me a um grupo empenhado em pesquisas de bom nível, ainda como doutorando bati às portas da Fiocruz em uma visita que fiz a Bernardo Galvão Castro-Filho. Galvão abriu as portas do Departamento de Imunologia do IOC, que oferecia condições de trabalho que, a meu ver, permitiriam alcançar esses objetivos.

Deixei Paris na noite gélida e festivamente iluminada de 23 de dezembro de 1983 e cheguei de volta ao Rio de Janeiro na manhã tórrida do dia 24. Graças a Galvão e a José Rodrigues Coura, então chefe do departamento e diretor do Instituto, respectivamente, assinei contrato com a Fiocruz no dia 27 daquele mês e recebi no dia cinco de janeiro o meu primeiro contracheque. Iniciei imediatamente a tarefa de construir um grupo de pesquisas em malária no Departamento.

Dez anos depois, durante os quais o IOC foi a minha residência principal e onde passei a maior parte das minhas horas acordado (como tem sido nos quase 20 anos seguintes), um grupo de colegas me incentivava a lançar minha candidatura à Diretoria do IOC. Tinha 40 anos de idade. Eu havia trabalhado, como prossigo trabalhando, em várias instâncias para o IOC e a Fiocruz, mas, sinceramente, ainda hoje, quando olho para o Castelo e penso na grandeza da Instituição e na importância do cargo que tive a honra de assumir e ocupar, penso que trabalhar aqui tem sido um presente dos céus. Aqui passei a conviver com uma história maior mesmo do que a dos homens que fazem parte dessa família “Cruziana” e com quem tanto aprendi. Eu provavelmente seria injusto com a comunidade se tentasse citar todos, ou mesmo muitos... Não tento. Mas peço licença para prestar no meio dessas linhas uma pequena homenagem à comunidade do IOC, nas pessoas queridas de Haity Moussatché, Hélio Gelli Pereira, José Rodrigues Coura, Leonidas de Mello Deane, Renato Sérgio Balão Cordeiro e Wladimir Lobato Paraense; extraordinários cientistas que sempre pautaram todas as suas ações em normas de conduta ética e moral exemplares. Ter tido a oportunidade de conhecê-los e viver com eles é mais um privilégio que esta casa me ofereceu e penso que a todos os que nela trabalham.

As vice-diretorias eram cargos recentes no IOC e compus uma chapa que correspondia exatamente à que eu queria e achava que necessitava, na época, para ganhar a eleição e dirigir o Instituto com competência. Tratava-se da primeira disputa eleitoral da história de nosso Instituto e meu adversário era ninguém menos do que o nosso Renato Cordeiro.

Reconhecendo como heterogêneas a composição da comunidade e as atividades do Instituto, escolhemos, para companheiros da diretoria, representantes de diferentes vocações e da realidade do Instituto: da pesquisa básica tradicional à pesquisa de ponta em áreas temáticas voltadas à demanda social do país e à pesquisa clínica associada a um serviço assistencial de qualidade. Criamos as vice-diretorias específicas de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico, Ensino e Assistência e Administração e, para ocupá-las, tivemos a honra de ver aceitos os três únicos convites que fizemos. Aliás, meus vices alegaram que o convite foi quase uma ameaça: “Ou você aceita ou não haverá a chapa”. Quero agradecer mais uma vez, com a mesma emoção do primeiro dia, aos colegas Albanita Viana de Oliveira, Delir Corrêa Gomes Maués da Serra Freire e Hooman Momen. Foi, para mim, um especial privilégio trabalhar e conviver com eles e, a cada dia de nossa gestão, um desafio e um exercício de humildade e aplicação, tentar absorver a serenidade e a determinação da Albanita, a sensatez e o equilíbrio da Delir e o sentido de justiça e a imparcialidade do Momen. Tenho daqueles momentos e do convívio com eles uma lembrança quase emocionada.

Em meu discurso de posse, 22 dias antes do 93º aniversário de nosso Instituto, falei de dois ingredientes inerentes à relação amorosa e, certamente não por coincidência, também à nossa atividade profissional: a paixão e o compromisso. A paixão tem como primus movens a descoberta. Só nos apaixonamos pelo novo, pelo que descobrimos e é, portanto, a nossa capacidade de criar, de nos renovarmos, de nos fazermos surpreendentes, que nos faz objeto da paixão. Da mesma forma, é o desafio de descobrir o desconhecido que nos contamina com o interesse... que nos apaixona. Falei também de outro ingrediente que adotamos na nossa proposta de defesa das atividades de pesquisa: o compromisso, e aí evoquei a demanda sócio-sanitária da época, decorrente de mais de 36 mil casos de Aids, um milhão de casos de malária por ano, 10% da população com esquistossomose, outro tanto vivendo em área de risco para doença de Chagas, a cólera batendo em nossas portas... Defendi, na oportunidade, uma ciência feita por profissionais híbridos, movidos pela paixão e sensíveis ao compromisso, forças que continuam a me mover.

Defendemos a busca de fontes alternativas e a luta por mecanismos adicionais para o financiamento da pesquisa, em áreas temáticas priorizadas pela comunidade em função da demanda social do país. Tinha em mente o instrumento de marketing que possuímos e que nenhuma empresa pública ou privada jamais ousou ter: um Castelo. De lá para cá, avançamos bastante, é verdade, mas existe um muito maior caminho a ser ainda percorrido...

Para o ensino, propusemos a criação da Secretaria Acadêmica e do Centro de Estudos Avançados, a integração e complementaridade dos programas de pós-graduação e a realização de cursos de nível médio em parceria com outras unidades da Fiocruz para colocar em prática nosso discurso de que doutores, é preciso formá-los, mas desde a entrada na escola, e não à saída da universidade. Acreditava eu que programas de educação em ciências nos permitirão assumir a responsabilidade que temos no despertar da vocação científica e na popularização do conhecimento. Implantamos algumas ações, outras vieram nas gestões seguintes. O fortalecimento de uma instituição se faz com vagar, serenidade, tempo... Temos a sorte de ter uma diretora absolutamente compromissada com a Educação em Ciência e Saúde, acho que desde que a conheço.

Fizemos algumas conquistas e contribuições, uma gestão participativa e absolutamente transparente. Fomos inovadores, certamente, um pouco, mas não reformistas. Estava certo de que tudo que um Instituto a alguns anos de completar um século de existência não precisava era de Diretores com ideias geniais demais. Parecia-me, ao contrário, que a humildade e o respeito à tradição e à força da história deveriam ser nossos guias inspiradores. Certa vez, Momen, nosso vice de Pesquisa e Editor das Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, veio me apresentar sua proposta de nova apresentação de nossa, hoje centenária, revista. Aceitei a cor (tijolo) evocativa do castelo (com os números especiais em verde), sugeri que mantivesse a grega/guirlanda presente desde 1912, mas que não mudássemos o tamanho da revista. Não queria que nossa gestão aparecesse nas prateleiras das Memórias: ‘Repare, a partir desse número (mais altinho ou mais baixinho que os outros), foi a gestão do Claudio Ribeiro’...

O Castelo, com tijolos de Marseille e ferragens alemãs, é sólido o bastante e teria tolerado e digerido nossa pretensiosa ousadia como aturou e superou muitas outras e aturará igualmente ainda outras. Mas não é justamente quando temos o poder de mudar as coisas que devemos mais humildemente pensar se devemos? Ver além de nós mesmos e perguntar: que benefício há, finalmente, por trás de nossa bem intencionada ação?

Mas essas reflexões concernem ações passadas e eu queria que minha conclusão fosse sobre uma preocupação presente, também com a Educação. Tem-se discutido a Criação de uma Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Tecnológico da Cidade do Rio de Janeiro. Em uma das correspondências, vi um colega sugerir que se priorizasse, alternativamente, o reforço às Escolas Municipais e o Ensino Básico na cidade, carentes e desprotegidos. Faço coro com ele, não para defender que se vista um Santo despindo outro, mas sugerindo que os idealizadores da Fap do Rio lutem também pelo enfrentamento desse problema junto à Secretaria de Educação. São problemas distintos, embora evidentemente ligados, e não é à toa que o Governo Francês trata da Educação em dois Ministérios: o da Educação, para os Ensinos Básico e Fundamental, e o do Ensino Superior e da Pesquisa para o Ensino Universitário e a Pesquisa.  Colocada junto com Brasil e Gana em um estudo do Banco Mundial nos anos 1960, a Coreia do Sul surpreendeu e superou o Brasil, apontado na época como País do futuro, em vários indicadores como renda per capita e o número de patentes. As razões são simples: um brutal investimento em educação, um Coreano médio passa hoje mais tempo na Escola do que um Europeu.

Encerro estas linhas, já longas, dizendo de minha certeza de que minha dedicação fecunda e paixão inexaurível pelo IOC motivam e justificam tudo que faço aqui. Tenho, entretanto, a plena e humilde certeza de que seria inglória qualquer pretensão de identificar minhas contribuições para nossa Casa. Tenho, ao contrário, a nítida impressão de que todas as minhas eventuais conquistas profissionais e acadêmicas, obtidas em torno de nosso suntuoso castelo, ainda que às vezes a duras penas, decorreram unicamente do reconhecimento que tem a academia, a comunidade e o país da grandeza de nosso Instituto e de nossa Fiocruz.

Um feliz aniversário para todos nós, que vamos, certamente, passá-lo trabalhando, como os outros dias de nossa semana e de nossas vidas profissionais. Muito obrigado!



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