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HermannHermann

O currículo do pesquisador Hermann Gonçalves Schatzmayr acompanha a própria evolução do quadro epidemiológico das doenças virais no Brasil. No IOC desde 1961, participou dos esforços de erradicação da varíola e da poliomielite. Nos anos 80, liderou a equipe responsável pelo isolamento dos vírus do dengue 1, 2 e 3 no país. Foi presidente da Fiocruz entre os anos de 1990 e 1992, assumindo o cargo num momento extremamente delicado na história da Fundação. Reconhecido como um dos maiores virologistas do país, até o fim da vida Hermann conduziu estudos sobre dengue e poxvírus. O pesquisador faleceu no dia 21 de junho de 2010, deixando enorme contribuição ao IOC, à Fiocruz e ao desenvolvimento da ciência nacional. O depoimento que segue abaixo foi dado poucas semanas antes.

“Me formei em medicina veterinária pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Durante a faculdade, fui monitor da cadeira de microbiologia. O professor Fernando Ubatuba, pesquisador da Fiocruz, foi o paraninfo da minha turma. Ele recomendou que me matriculasse no curso de microbiologia ministrado pelo professor Paulo de Góis na Universidade do Brasil, atual Federal do Rio de Janeiro. Na época, era o único curso do gênero que havia na cidade. Aceitei o conselho e, em 1958, me tornei aluno da segunda turma. Durante um ano, frequentei as aulas de microbiologia, na Praia Vermelha, em tempo integral. Ficávamos até a noite estudando. Depois que concluí o curso, tive a oportunidade de ficar por mais um ano, atuando como bolsista de virologia num laboratório da universidade. Estudei amostras de uma grande epidemia de influenza que houve no Rio entre 1957 e 1958 e também trabalhei com febre amarela.
Em 1960, por intermédio dos professores, consegui uma bolsa no Instituto de Higiene da Universidade de Viena. Tinha uma tia que morava lá, coincidentemente a alguns metros da universidade, e que me hospedou durante esse período. Não era um instituto rico e o valor da bolsa também não era lá grande coisa, ganhava cerca de US$ 80, mas a experiência foi enriquecedora. Trabalhava na bancada com o vírus de encefalite do carrapato. Inoculava camundongos em cima da mesa, usando apenas luvas. Depois que voltei ao Brasil, soube que uma colega que trabalhava comigo se infectou e quase morreu.

Em 1961, após um ano de estágio na Áustria – onde publiquei meus primeiros trabalhos científicos –, voltei ao Brasil e retomei minhas atividades na UFRJ. Porém, não permaneci lá. No mesmo ano, o professor Joaquim Travassos da Rosa, diretor do IOC, estava montando um laboratório de poliomielite no Pavilhão Rockefeller, hoje ocupado por Biomanguinhos. A convite de Travassos, passei a integrar, a partir de junho, a equipe desse novo laboratório, que contava com o suporte da Organização Mundial da Saúde. Lembro que a primeira vez que entrei no campus foi em 1955. Eu era representante de turma na universidade e fui falar com o professor Hugo de Souza Lopes. Saltei do ônibus, subi a rampa e as escadas ao lado da Casa de Chá e olhei para cima, vi o castelo e tremi. Lembro da emoção que senti e até hoje me emociono.

Atuava como bolsista, mas logo uma lei garantiu que todos os bolsistas daquela época entrassem para o quadro efetivo da Fiocruz – e eu era o único pesquisador da área de virologia. No laboratório, fazíamos isolamento do vírus da pólio, identificação, estudo de surtos e da resposta à vacina oral – a vacina Sabin começava a ser usada. Pouco depois, o Brasil passou a importar a Sabin concentrada e nós cuidávamos da diluição e da distribuição da vacina para todo o país. Naquele tempo, o produto só tinha validade de uma semana, mas não havia máquinas. Tudo tinha que ser feito de modo artesanal e muito rapidamente. Era comum trabalharmos de sexta para sábado.

Em 1965, casei com Ortrud Monika Barth, pesquisadora da Fiocruz e filha de Rudolf Barth, cientista do ramo da zoologia que atuava na Fundação desde que desembarcou com a família no Brasil, vindos da Alemanha. Nesta época, recebi o convite para fazer meu doutorado no exterior, com bolsa da Fundação Humboldt, na Alemanha. Antes de partir, precisei convencer Rocha Lagoa, presidente da Fiocruz na época, a me liberar. Ele negou, alegando que eu deveria fazer primeiro um curso em Manguinhos. Brigamos durante uns seis meses, mas eu estava decidido: se ele não me liberasse, eu pediria demissão. Por fim, ele cedeu, só que cortou meus vencimentos. Consegui reverter a situação a meu favor com o pessoal do Ministério da Saúde.

Eu e Monika ficamos na Alemanha durante pouco mais de um ano. Defendi minha tese praticamente na véspera de minha viagem de volta ao Brasil, em 1966. Nunca pensei em não retornar ao Brasil. Um professor perguntou se eu não gostaria de ficar na Alemanha, mas minha esposa não queria – ela nasceu na Alemanha e tinha recordações ruins da guerra. Além do mais, não gosto muito do frio e a Fiocruz sempre foi a minha meta. Então, voltamos.

No retorno à Fiocruz, fui convocado por Rocha Lagoa para trabalhar na produção da vacina contra varíola, atividade que realizei por cerca de seis meses. Talvez ele achasse que isso me aborreceria. Pelo contrário: aprendi muito e foi excelente, porque depois eu assumiria um laboratório de varíola. Em 1967, recebi um convite da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp). Estavam criando um departamento de ciências biológicas e me deram a incumbência de montar um laboratório de poliomielite. Convidei outros pesquisadores para compor a equipe, entre eles o virologista Akira Homma.

Com Vinícius Fonseca à frente da Fiocruz, tive a chance de retornar ao IOC. Ele me chamou e disse que eu seria coordenador da virologia, cargo que ocupei por quase 30 anos. Existia uma área vazia no quinto andar do Pavilhão Rocha Lima, porque a ditadura havia cassado os pesquisadores. Ele me ofereceu o local e começamos a trabalhar, inicialmente com pólio e depois com outros vírus.

Ali instalado, meu compromisso era fortalecer a virologia. Para isso, sempre integrava novos pesquisadores e estimulava a equipe a fazer cursos no exterior. O Departamento de Virologia cresceu tanto que já não cabia no Pavilhão Rocha Lima. Foi quando parte dos pesquisadores passou a ocupar o Pavilhão Cardoso Fontes. Éramos um grupo muito unido e atuante, criamos o primeiros laboratórios de pólio, hepatite e rubéola no Rio de Janeiro. Fui chefe do departamento por 26 anos.

Na década 80, a dengue era motivo de preocupação em alguns países das Américas Central e do Sul. Alertei que a epidemia chegaria ao Brasil, já que era grande a população de Aedes aegypti no país. Então, sugeri que a pesquisadora Rita Nogueira fosse participar de um curso da Organização Pan-Americana de Saúde sobre o assunto no exterior. Em 1986, fomos procurados pela Secretaria Municipal de Belford Roxo, município próximo ao Rio de Janeiro. Por lá, surgiram casos de uma doença que tinha como sintomas febre e exantemas. Colhemos as amostras e, no dia 28 de abril, isolamos pela primeira vez no Brasil o vírus tipo 1 do dengue. Era o início da epidemia. Mais tarde, também fomos os primeiros a isolar os tipos 2 e 3 da vírus e nos tornamos centro de referência.

Em 1990, havíamos acabado de isolar o vírus do dengue 2 e recebi um telefonema de Brasília solicitando que eu fosse com urgência para lá. Fui levando todo o material de dengue 2, mas não era este o assunto que queriam tratar comigo: o ministro da Saúde queria me nomear presidente da Fiocruz. Levei um susto. Aquilo não era meu perfil. Os três nomes mais votados na eleição interna da Fiocruz não tinham sido aceitos pelo ministro. Porém, enquanto a situação não se resolvia, quem sofria era a Fiocruz. Nos primeiros meses do ano, começaram a faltar recursos para atividades rotineiras. Por isso, depois de conversar com a minha família e com colegas de trabalho, decidi aceitar a Presidência, mas por pouco tempo, até que as coisas se acertassem. Parece que o ministro já tinha feito o convite a outras pessoas, mas ninguém havia aceitado. Só mesmo um profissional da casa para aceitar, porque a situação era muito complicada.

A Associação dos Servidores da Fundação Oswaldo Cruz tinha receio de que, por ordem do Ministério, eu demitisse trabalhadores, mas garanti que não faria isso. Conversei com a Asfoc e com muitos colegas. Se não me apoiassem, eu voltaria para o meu lugar de pesquisador. O risco era que então talvez nomeassem um deputado como presidente da Fiocruz, o que seria pior. Foi por isso que decidi aceitar a missão de ficar um período à frente da Fundação.

Graças ao apoio que recebi da comunidade e de meus vice-presidentes e aos recursos liberados pelo Ministério, foi possível melhorar salários, incorporar novos funcionários; fazer obras tanto nas unidades do Rio de Janeiro como nos centros regionais – o que inclui, por exemplo, o início da construção da Biblioteca Central, em Manguinhos, e o novo prédio do Instituto René Rachou, em Belo Horizonte –, adquirir novos equipamentos para a fábrica de vacinas; firmar convênios internacionais.

Além disso, a minha ideia era implementar exames prévios de saúde para os funcionários, para que as doenças, diagnosticadas no início, fossem mais facilmente controladas. Foi então que o grupo do Fundo de Previdência Privada da Fiocruz (FioPrev) me mostrou um projeto de plano de saúde que estava engavetado. Levamos o projeto adiante e implantamos o FioSaúde. Aquilo foi socialmente fantástico. Desde os primeiros meses, o plano de saúde foi muito utilizado, demonstrando que havia uma demanda reprimida dos funcionários por serviços de saúde.

O tempo foi passando e o ministro da Saúde foi substituído. Coloquei meu cargo à disposição, mas o novo ministro me pediu que ficasse um pouco mais. Houve, então, outra troca de ministros. Concordava que havia necessidade da realização de uma eleição interna. O Ministério da Saúde cedeu e nomeou para a presidência da Fiocruz o médico Carlos Morel. Voltei ao meu laboratório em dezembro de 1992.

Também me dediquei à área de bissegurança, fui presidente da Comissão de Biossegurança do IOC (CIBio/IOC). Presidi a Comissão Técnica de Biossegurança da Fiocruz por quatro anos e fui membro, em Brasília, da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) do Ministério da Ciência e Tecnologia. Como virologista, no início da carreira, trabalhei com vírus de alto risco sem proteção adequada e convivi no laboratório com infecções de colegas de trabalho, por pouco não sendo também infectado em pelo menos duas ocasiões. Na Organização Mundial da Saúde, comecei a conhecer melhor as propostas de biossegurança para os laboratórios e me interessei pelo assunto.
No final dos anos 90, eu e uma equipe de pesquisadores passamos a investigar casos de poxvírus em animais e humanos. Trata-se da emergência de uma doença causada pelo vírus vacinal da varíola. A questão é que, por desconhecimento, a vacina contra a varíola pode ter sido manuseada sem o devido zelo. Com isso, depois de muitos anos, voltei a estudar o vírus da vacina, projeto ao qual me dedico atualmente.

Continuarei me dedicando à pesquisa. Basta que os pesquisadores olhem pela janela, se deparem com a carência das comunidades que nos cercam para se certificarem do quanto nosso trabalho é importante. Sempre trabalhei com foco na doença, no doente e na carência a nossa população.


 

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