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LobatoLuis rey

Um sonhador que queria mudar o mundo, médico inquieto, pesquisador, professor e epidemiologista pouco disposto a conformar-se com os problemas de saúde pública no Brasil e em todo o planeta. Do Baixo Xingu a Bom Jesus da Lapa, Luis Rey percorreu o país e conheceu as reais necessidades de saúde do povo brasileiro. Exilado pela ditadura, atuou na Venezuela, na Tunísia, ganhou a América, a Ásia, o mundo, dando assistência técnica à OMS para questões de saúde pública de diversas regiões.De volta ao Brasil com a redemocratização, em 1983, passou a abrilhantar as discussões e pesquisas realizadas na Fiocruz e no IOC. Seu livro de parasitologia e seu dicionário de termos médicos estão entre as mais importantes publicações do gênero no mundo e são bases para a formação de novos médicos e cientistas brasileiros. Luis Rey faleceu em 2016, deixando um legado para a saúde pública no Brasil e no mundo.

“Sonhar. Os dicionários registram muitas acepções para este termo, entre as quais “ver em sonhos” e “entregar-se a fantasias e devaneios”. Isso quer dizer que se pode sonhar dormindo, mas também desperto. Se sonhar durante o sono, em geral, só tem importância em nível subconsciente (ou para os que vivem da psicanálise), os sonhos que se constroem em estado de alerta têm grande significado para a programação da vida de cada um.

Nem todos têm a mesma capacidade para sonhar acordado. Muitos só o fazem assumindo mentalmente o papel de algum personagem de romance, de contos ou novelas da televisão. Outros são sonhadores inveterados, fazendo-o frequentemente ao ter de enfrentar problemas, buscar soluções, tornar uma decisão ou, simplesmente, quando estão em repouso, sem nada que fazer. Eu pertenço a esta categoria.

Filho de família de poucos recursos, em São Paulo, tinha que imaginar meus brinquedos, meus passeios e tudo que não poderia ter ou fazer. Mas, vivendo em um ambiente de ternura e carinho, com meus pais e minhas irmãs Carmen e Eusébia, minhas fantasias sempre tiveram caráter tranquilo e sabor alegre. Talvez eu tenha um gene que me predispõe para uma vida feliz, aconteça o que acontecer.

Quando criança, vivia em minha casa uma moça bordadeira da Ilha da Madeira que, além de bordar muito bem, gostava de ler e de contar histórias. Eu e minhas irmãs adorávamos ir ouvir as narrativas que transmitia de memória, no seu estilo simples e muito humano. Creio que foi assim que minha imaginação ganhou espaço e desenvoltura, desde muito cedo.

Depois, vieram a escola, os livros didáticos e as revistas infantis daquele tempo, que enriqueciam o conhecimento ao mesmo tempo que nos divertiam. Poucas vezes a família podia sair para umas férias em Santos. Mas desfrutávamos tais oportunidades intensamente.

Já na adolescência, apaixonei-me pela biologia, movido por forte curiosidade e interesse por tudo que se referisse à vida, à reprodução, aos organismos, sua morfologia e fisiologia. Comecei a sonhar com uma carreira em que esses fossem os temas principais, tanto para o saber como para a ação. A convivência com um parente e com professores que eram médicos consolidava minhas aspirações e minhas fantasias. Queria também ser médico.

Desde o Curso Pré-médico, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, sentia-me como se tivesse nascido de novo, já adulto e já inserido em um mundo real onde meus sonhos podiam realizar-se. Oportunidades para sonhar grande, programando a vida futura ao sabor de minha imaginação e minhas inclinações. Estava muito feliz.

Inicialmente sonhava ser psiquiatra, pois a psiquiatria me parecia área muito nobre da medicina, lidando com o cérebro e seus problemas. Mas, logo que começaram as aulas dessa especialidade, constatei a pobreza de recursos com que se contava, na época, para tratar um doente mental. Decepcionado, mudei de rumo: optei pelo estágio em um serviço de cardiologia, no hospital das Clínicas da USP, que me pareceu ambiente e prática com maior embasamento científico.

No entanto, quando comecei a clinicar, percebi que meus clientes eram quase sempre idosos com formas avançadas das cardiopatias, que buscavam médicos jovens, depois de esgotadas as esperanças de obter solução com os velhos cardiologistas. E convenci-me de que minha tarefa era, sobretudo, retardar o desfecho final, adiando a morte por algum tempo: semanas, meses ou, talvez, anos.

Minha vontade de construir algo positivo e duradouro, não suportava isso. Mormente porque, então, meus sonhos já enveredavam pela megalomania. Ingressando nas fileiras do Partido Comunista com grande entusiasmo, pensava que, em breve, estaria contribuindo para mudar o mundo, visto que acabava de ver a derrota do nazi-fascismo e do imperialismo japonês pelos exércitos da União Soviética.

Profissionalmente, pensava numa medicina para o grande público e para reduzir a mortalidade pelas grandes endemias, principal problema de saúde no Brasil. Sonhava com uma medicina voltada para a proteção da saúde e o controle dos fatores de risco.
Orientado pelo professor Samuel Pessoa, aceitei um contrato com o SESP (Serviço Especial de Saúde Pública) para trabalhar como médico na Amazônia, com salário razoável e sem ter que cogitar se os pacientes poderiam pagar o tratamento ou comprar os medicamentos.

Como chefe de um Posto de Saúde em Gurupá, às margens do Rio Amazonas, e com um vasto distrito sanitário que incluía o Baixo Xingu e o início do Delta Amazônico, coberto pela grande floresta, eu estava encantado e feliz. Parte do tempo passava-o a bordo de uma embarcação com que circulava pelos rios, tratando seringueiros e suas famílias. Cercado pela floresta exuberante, de onde desciam lianas como verdes cortinas, e onde pousavam os pássaros mais diversos, como as garças, as ciganas, as arirambas (ou Martim-pescador) e muitas outras. Aquela algazarra dos bandos de periquitos e araras que cruzavam os céus criava um ótimo ambiente para sonhar.

O que me despertava dos sonhos era a frequência com que os pacientes tratados e curados não tardavam em voltar de novo à consulta, com as mesmas infecções, a mesma malária, as mesmas verminoses e os mesmos problemas. As condições epidemiológicas, agravadas pela pobreza, a ignorância e as péssimas condições gerais de vida da maioria da população, permaneciam sempre as mesmas. Mais que problemas médicos, eram os problemas sócio-econômicos que eu via pela frente.

Reconheci que havia sido formado para ser médico de cidades grandes e de grandes hospitais, como o Hospital das Clínicas em São Paulo, e para populações do meio urbano. Faltava-me uma formação de sanitarista, pensava eu.

Sonhei, então, completar minha formação indo estudar saúde pública no Sul; e, também, conhecer melhor o meu país, coisas que na verdade não se aprende na escola, peguei um avião em Belém, mas desembarquei em Fortaleza para voltar a São Paulo lentamente por terra, visitando as capitais e atravessando o interior do Ceará de norte a sul, a Paraíba, Pernambuco e a Bahia (passando inclusive por Candeias e Paulo Afonso). Nas localidades do interior, onde não havia médico, atendia alguns pacientes. Depois, subi o Rio São Francisco numa “gaiola”, até Pirapora, com paradas em Bom Jesus da Lapa e Januária, e cheguei de trem a Belo Horizonte. Daí para São Paulo. Durante os cinco meses de viagem, aprendi muito e meus sonhos tornaram-se mais realistas.

Na Faculdade de Saúde Pública de São Paulo, que comecei a frequentar, constatei que meus professores não conheciam o país e falavam uma linguagem alienada. Decepcionado, abandonei o curso. Sonhei alargar meus horizontes no Exterior, aproveitando uma bolsa para França, onde fui para estudar saúde pública e tomar um banho de civilização, durante ano e meio (de 1948 a 1950). Convivência com muita gente, de diferentes origens; passeios e viagens por vários países e muitas cidades, ouvindo concertos ou visitando museus, iam transformando sonhos em realidades bem vividas.

Lá conheci Dora, também bolsista do Governo Francês na área de geomorfologia, que passou a estar no centro de meus sonhos para o longo futuro. Idílio em Paris. Voltando de lá, casei-me com ela, no Rio de Janeiro, redesenhando meu plano de vida, em parte sonhando, em parte com os dois pés no chão. Trabalhando para a Divisão de Organização Sanitária do Ministério da Educação e Saúde, segui viajando pelo país, em 1950.

Um ano depois, convidado pelo Prof. Samuel Pessoa, voltava à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, agora para tornar-me professor assistente de Parasitologia e fazer pesquisas de laboratório ou de campo, doutorado e livre-docência. Nas horas vagas, eu e Dora criamos três filhos, para aumentar a população do país (três futuros médicos). Mas, depois, decidimos gozar a vida sem agravar os problemas populacionais: a chamada explosão demográfica.

Tudo ia bem, até que num primeiro de abril de 1964 o Brasil sofreu o choque violento de uma ditadura militar. Dias depois, fui despertado com a notícia de que havia sido cassado pela ditadura (com o chamado AI-1) e que iria ser preso como “subversivo”. Antes que isso acontecesse, corri para a Venezuela, onde tinha bons amigos, e depois para o México, com toda família, onde fui ensinar parasitologia. Nesse país lindo e amigo a vida parecia um sonho: todos em casa estavam felizes e desfrutavam do prazer de ver suas paisagens insólitas e sua cultura polimorfa, herdeira de povos diferentes que aí deixaram suas marcas. Uma beleza. Valeu a pena esse exílio.

Voltei três anos depois à Universidade de São Paulo (agora lotado na Faculdade de Saúde Pública), para ser novamente cassado pelo AI-5 em 1969. Não adiantou eu seguir ensinando em Taubaté e depois em Londrina, pois, ameaçado novamente de prisão, em 1970, tive que partir novamente para o exílio, via Paris, Genebra e Alexandria. Desta vez, com um contrato da Organização Mundial da Saúde, para fazer o controle da esquistossomíase hematóbica na Tunísia.

Quando cheguei lá, me levaram para visitar as áreas endêmicas onde deveria criar, do zero, um programa de controle de uma endemia que grassava nos oásis do deserto de Saara, causada por um parasito novo para mim e transmitida por moluscos que nunca havia visto antes. Confesso que fiquei assustado.

Eu, que sempre havia vivido num mundo verde, entre povos com uma cultura muito diferente da muçulmana, tinha que pôr a coragem e a imaginação para funcionarem como nunca, pois não podia voltar ao Brasil e outro emprego internacional seria muito difícil conseguir. Pensava, então, ou eu acabo com a esquistossomíase aqui ou é ela que acaba comigo. Várias vezes enfrentei situações semelhantes, sem possibilidades de subtrair-me ao desafio. Era necessário entender o problema novo, imaginar uma solução para ele, começando por sonhar com ela; depois, testá-la e, por fim, partir para a prática.

Eu, Dora e os filhos acabamos adorando o país, onde vivíamos muito felizes. Heloísa, na Faculdade de Medicina de Tunes, casou-se com um colega, Mohsen Farza. Quatro anos depois, tendo eliminado a endemia nesse país, meu contrato também acabou e eu tive que buscar outro, encontrando-o na sede da OMS, em Genebra, para dar assistência técnica a países do Médio Oriente, da África, da América Latina e do Caribe.

A Suíça é um país de sonhos, para quem pode pagar os custos. Além das paisagens soberbas com suas altas montanhas coroadas de neve, dos vales férteis com extensos vinhedos e de seus lagos transparentes, é um país que funciona como um relógio (e como fabrica relógios...). Fácil de usar e de desfrutar.

Viajando com muita frequência por quatro continentes como consultor médico da OMS, além da satisfação no trabalho, encontrava razões e estímulos para sonhar muito, construindo uma carreira que deveria durar longamente. Sempre contando com o apoio indispensável de Dora e com o carinho dos filhos e das muitas amizades que cultivávamos por toda parte. Os três filhos, vendo a vida invejável do pai, decidiram estudar medicina; Heloísa em Tunes, Luís Carlos em Genebra e Clara no Brasil.

Mesmo depois de aposentado, aos 60 anos, eu segui trabalhando como consultor da OMS, inclusive durante três anos em Moçambique (1980-1983), onde eu e Dora continuávamos felizes sonhadores, desfrutando tudo o que lá havia de bom e admirando sua fauna rica e variada, em terra e no mar.

Mudando frequentemente de emprego e de país, ora como professor de parasitologia, ora como pesquisador ou epidemiologista, em ambientes tão diversos e com programas bem diferentes a desenvolver, é necessária muita imaginação para sobreviver, além da capacidade de aceitar os desafios, sem voltar atrás e sem possibilidades de fracassar. Sonhar com o êxito representa metade do caminho para ser bem sucedido, pois sonhar e pensar são funções complementares.

Finalmente, nosso sonho maior, que era voltar para o Brasil, tornou-se realidade em fins de 1983. Agora, nossa felicidade mora em Ipanema, numa cobertura onde se avista o Corcovado e o mar.

Mas ir trabalhar na Fundação Oswaldo Cruz tornou-se outra fonte de alegria, onde os amigos se multiplicaram e onde as atividades me agradavam tanto que me parecia estar sonhando. Organizar a pesquisa com vistas para a saúde, formar pessoal para isso, divulgar conhecimento nas áreas de medicina e saúde, tornaram-se objetivos sempre desejados. Por isso, além de dar aulas e fazer palestras por todos os cantos do país, passei a escrever livros de textos e dicionários sobre esses assuntos. Maneira de tornar os sonhos em realidades, e não apenas para auto-satisfação.

Mas nem todos os sonhos chegam a realizar-se na prática. Meu sonho maior é com a humanidade livre dos atuais problemas e suas injustiças. Com uma sociedade sem milionários e sem miseráveis, sem ricos explorando pobres, sem gente levando uma vida indigna de seres humanos, sem as absurdas taxas de mortalidade infantil no terceiro mundo e sem tanta gente infeliz ou desesperada.

Sonho com um mundo de organização socialista, um mundo como aquele com que sonhava Marx e com que sonha toda gente de bem, honesta e suficientemente esclarecida. Nada de conservantismo ou conformismo com os males vigentes. Nada de refugiar-se em crenças absurdas, nem crer em milagres que nunca acontecem. Mas, se a solução desses problemas não é para já, trabalhar para que ela não tarde, mesmo que não seja para nosso tempo, é um ideal dos mais nobres e saudáveis.

Nada nos impede de continuar sonhando.



 
 

 

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