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Desafio: metodologia de primeiro mundo para um país em desenvolvimento

Isolar o HIV-1 no Brasil significava implantar, em um país em desenvolvimento, técnicas já amplamente utilizadas por países desenvolvidos. Um desafio que exigia, além de infra-estrutura laboratorial e financiamento, recursos humanos de alta qualidade. Formar uma equipe multidisciplinar composta por especialistas e estudantes envolvidos em diferentes áreas do conhecimento e dotados de habilidades distintas foi a estratégia adotada pelo imunologista Bernardo Galvão. Entre os componentes deste time, estavam virologistas, imunologistas e bioquímicos que hoje integram o mais alto escalão da ciência brasileira e acumulam reconhecimento internacional.

Foto: Monika Barth/IOC

A primeira imagem do HIV obtida no Brasil, em 1987

“No início dos anos 1980, a metodologia adequada para o isolamento do vírus da Aids não estava disponível no Brasil e a massa crítica especializada no tema era praticamente inexistente. A solução de Galvão foi integrar metodologias e recursos humanos especializados em outras áreas para que os conhecimentos fossem adequados à pesquisa em HIV/Aids. Hoje posso afirmar que fomos pioneiros em isolar o HIV-1 no Brasil e na América Latina porque além de vontade e competência tínhamos o apoio de uma instituição de pesquisa comprometida com a saúde pública, como a Fiocruz, e a orientação de um coordenador exemplar, capaz de aglutinar diferentes especialistas em um projeto novo para todos”, avalia o biólogo José Carlos Couto-Fernandez, pesquisador do Laboratório de Aids e Imunologia Molecular do IOC e especialista em resistência viral, recém-formado em Biologia quando integrou o projeto.

“Antes do isolamento do HIV-1 no mundo, pouco se sabia sobre o vírus e o estudo da Aids estava restrito a análises imunológicas de pacientes infectados, realizadas a partir de amostras clínicas coletadas em hospitais. Para produzir um profundo conhecimento sobre a infecção, era preciso ampliar a perspectiva investigativa e estudar diretamente o agente etiológico causador da doença, o HIV-1. E para isso era preciso isolá-lo”, Galvão explica. “Em 1987, quando o vírus já havia sido isolado em outros países, a metodologia necessária para realização desta tarefa já era conhecida, embora não estivesse disponível no Brasil. O que precisávamos fazer, então, era adaptar às nossas instalações as técnicas de isolamento viral utilizadas pelos laboratórios estrangeiros, para que pudéssemos dar início às análises bioquímicas, antigênicas e fenotípicas do vírus. Para isso, contei com o talento e a disposição de pesquisadores brilhantes que atuavam em áreas distintas do conhecimento, como doença de Chagas e leishmanioses, e que aceitaram corajosamente o desafio de isolar o HIV-1”, descreve.

 

O bioquímico Jairo Ivo dos Santos, atualmente professor da Universidade Federal de Santa Catarina, desenvolvia tese de mestrado em imunologia da Leishmania no Departamento de Imunologia do IOC quando foi convidado a integrar a equipe que isolaria o HIV-1 no Brasil

Para ter acesso aos detalhes da metodologia necessária ao isolamento do HIV-1, a bioquímica Vera Bongertz, pesquisadora do Laboratório de Aids e Imunologia Molecular do IOC que já integrava o Departamento de Imunologia do Instituto na década de 1980, viajou à França para acompanhar de perto as atividades do Laboratório de Oncologia Viral do Instituto Pasteur – primeiro no mundo a isolar o vírus da Aids, em 1983, sob coordenação do pesquisador francês Luc Montagnier. “A partir de meu estágio no Instituto Pasteur, pude trazer ao Brasil conhecimentos sobre a cinética de replicação viral e as concentrações celulares ideais para experimentos relacionados ao isolamento, além de amostras de um reagente que auxilia a fixação do HIV-1 em linfócitos hospedeiros, o Polybrene. Trouxe também uma técnica para a produção de antígenos para uso em Western Blot, técnica empregada para diagnóstico da infecção, que devido ao alto custo foi substituída pela imunofluorescência – método diagnóstico rotineiramente utilizado por laboratórios brasileiros”, Vera conta.

Reunidos os recursos humanos e tecnológicos, a equipe de Galvão finalmente deu início aos estudos que levaram ao isolamento do HIV-1 no Brasil, tendo como base as amostras cedidas pelos virologistas Hélio e Peggy Pereira. O primeiro desafio consistia em conseguir cultivar o vírus em laboratório, para que o processo de infecção de células saudáveis do sistema imune pudesse ser acompanhado pelos pesquisadores. O então estudante de doutorado Dumith Chequer Bou-Habib, hoje pesquisador do Laboratório de Imunologia Clínica do IOC e estudioso dos mecanismos de interação entre o HIV-1 e células do sistema imunológico, tornou-se um dos responsáveis por esta etapa do projeto, realizada também pelo biólogo José Carlos Couto-Fernandez e o bioquímico Jairo Ivo dos Santos, atualmente professor da Universidade Federal de Santa Catarina.

Foto: Walter Carvalho

O imunologista Bernardo Galvão (sentado) liderou
a equipe de jovens pesquisadores que isolou o HIV no Brasil

“Para isolar o HIV-1, primeiro é preciso fazê-lo crescer em laboratório, isto é, é preciso fazer com que ele se multiplique in vitro e possa ser observado pelos pesquisadores durante este processo. Para isso, empregamos um procedimento conhecido como co-cultivo celular, que consiste em misturar e cultivar células de indivíduos saudáveis e células infectadas pelo HIV-1, coletadas de pacientes. Após infectar as células saudáveis, o HIV-1 se replica de forma abundante, processo que pode ser acompanhado em laboratório através da observação de efeitos citopáticos, da medida de proteínas do HIV-1 no meio de cultura, da detecção de antígenos virais por imunofluorescência ou pela visualização do próprio vírus por microscopia eletrônica, por exemplo. Como eu utilizava diversos procedimentos de cultura de células em meu doutorado sobre a relação parsito-hospedeiro na Paracoccidioidomicose [infecção pelo fungo Paraccoccidioides brasiliensis], pude trazer esta contribuição à equipe coordenada por Galvão”, Dumith descreve.

Implantada a técnica do co-cultivo celular, os pesquisadores precisavam comprovar cientificamente a presença do vírus no meio de cultura. Ou seja: depois de infectar experimentalmente células saudáveis do sistema imune pelo HIV-1, era preciso identificar in vitro a replicação viral. A técnica internacionalmente utilizada para isto, a detecção da enzima transcriptase reversa – que caracteriza o HIV-1 por transcrever o RNA viral em DNA, permitindo sua replicação – não estava disponível no Brasil e, mais uma vez, o desafio foi vencido em um episódio bastante singular.

“A partir de amostras clínicas de pacientes, nós isolávamos linfócitos infectados pelo HIV-1, cultivávamos em co-cultura com células saudáveis, que eram então infectadas, mas não conseguíamos confirmar a presença do vírus nem sua replicação porque não dominávamos a técnica necessária para detectar a transcriptase reversa. Encontramos a peça final deste quebra-cabeça quando Carlos Morel, então pesquisador do Departamento de Bioquímica e Biologia Molecular do IOC e atual diretor do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde da Fiocruz, entrou em nosso laboratório com antígenos virais trazidos de Genebra. Aplicamos os antígenos ao co-cultivo e o reconhecimento deste material pelos anticorpos produzidos pelas células de defesa presentes no experimento confirmaram finalmente a presença do HIV-1 na cultura celular”, Galvão descreve. A notícia do isolamento do vírus da Aids na América Latina foi oficializada em 1987 com a publicação do artigo científico Isolation and antigenic characterization of human immunodeficiency vírus in Brazil na revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz.

 

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