Fiocruz
Relatos: Fatos da vida

Instantâneo #1
“A tez levemente morena; a cabelleira basta e castanha, entresachada de longos e numerosos fios brancos; o bigode fulvo e eriçado a lhe cobrir a bocca amplamente rasgada, onde os dentes fortes se mostravam; o nariz bastante pronunciado; e dominando a physionomia, uns olhos grandes, muito expressivos, de um tom verde claro, davam-lhe ao semblante um aspecto original.” [Relato de Ezequiel Dias]

Instantâneo #2
“Pouco antes da partida do trem, o grupo estava completo. A figura de Oswaldo destacava-se dentre os presentes. Havia alguma coisa de inconfundível nesse homem ainda jovem mas precocemente encanecido, de estatura meã, tez clara, o rosto fino, bigodes pretos com as pontas voltadas para cima, e um olhar a um tempo suave e penetrante. Vestia-se de preto, usando longa sobrecasaca e, na sua indumentária, fazia contraste a alva gravata de fustão cujas pontas, feito o laço, perdiam-se debaixo do colete. Cobria-lhe a cabeça uma cartola de abas recurvadas e copa demasiadamente longa para a moda da época. Cabelos compridos pretos, mesclados de fios prateados, escapavam-se em mechas indisciplinadas, por baixo das abas da cartola. Trazia sempre sob o braço volumosa pasta de couro preto, cheia de papeis e revistas científicas.” [Relato de Henrique Aragão]

Brandura
“Oswaldo quando observava alguma falha chamava com brandura a atenção para a mesma e com seus modos afáveis conseguia em geral os melhores resultados mas, também sabia ser enérgico quando necessário.” [Relato de Henrique Aragão]

Condutor de homens
“Oswaldo Cruz revelou-se então habilíssimo conductor de homens. Dirigia com doçura mas com firmeza. Não ordenava, recommendava ou pedia. Aos hesitantes procurava convencer pelo raciocínio, pela razão, a meia voz; desse modo, em pouco tempo o seu ascendente sobre os auxiliares era absolutamente oracular.” [Relato de Egydio Salles Guerra]

Passatempos
“Nos seus raros momentos de ócio, ou quando se via coagido a ouvir narrativas enfadonhas, como acontecia muitas vezes nas audiências que na Directoria de Saúde Publica tinha de conceder a pessoas desinteressantes, curvava-se sobre um papel e com lápis de cores ia traçando figurinhas e outros desenhos, onde por entre a confusão dos rabiscos se percebiam traços e linhas delicadas. Era o seu entretenimento predilecto.” [Relato de Ezequiel Dias]

Ortografia
“Advogado de fama, em acção movida á Saude Publica, ridicularizando Oswaldo Cruz, o arguiu de cometter faltas na redacção de certo documento de seu punho. Alguem perguntando-lhe como se dera aquelle lapso, respondeu elle com a maior naturalidade: “qual lapso... o homem tem razão, preciso estudar o portuguez”. [Relato de Egydio Salles Guerra]

O pedido de exoneração
“Entretanto, corria o tempo, as despesas de organização e os primeiros ataques ao mosquito esgotaram os cofres, mal abastecidos, da Saúde Pública; a comissão de Saúde da Camara, obstinada, não resolvia sobre a verba de cinco mil contos pedida pelo governo para dar á campanha o indispensavel desenvolvimento; por outro lado, nesse momento critico, tocava ao auge o furor reaccionario. Oswaldo Cruz, sem meios para levar por diante o plano sanitário iniciado, e , um pouco suspeitoso, pela tardança dos recursos, de que o governo esmorecia, pediu exoneração do cargo para não lhe criar difficuldades.

O Dr. J.J. Seabra, Ministro da Justiça recusou-a formalmente. Oswaldo Cruz dirigiu-se então, ao Presidente Rodrigues Alves. Este ao recebel-o entabolou conversa sobre a conveniência de restabelecer, ao menos em parte, como sedativo dos espíritos, o antigo processo de desinfecção, vivamente reclamado por profissionaes de nomeada. Oswaldo Cruz, desculpando-se, ponderou que em documento publico, tinha condemnado por inútil tal processo, não podia, por isso, restabelecel-o; mas que, justamente, para não criar maiores embaraços ao governo vinha pedir demissão do cargo, e que o “seu successor estaria mais á vontade para satisfazer os desejos do Presidente,”. “Como? Perguntou o Presidente, então não tem mais fé na theoria do mosquito? Fé absoluta, Sr. Presidente, responde-lhe Oswaldo Cruz, mas só com a minha fé não posso pagar ao mata-mosquitos, e a repartição está totalmente desprovida de dinheiro”.

E a verba de cinco mil contos pedida ao Congresso? Replica o Presidente. “Está encalhada na Commissão de Saude”, retruca Oswaldo Cruz. “Pois o Sr. prosiga; terá os recursos necessários muito em breve”. Assim foi.”

[Relato de Egydio Salles Guerra sobre o enfrentamento da febre amarela enquanto diretor geral de Saúde Pública]

Administrador
“Oswaldo Cruz marca uma das phases mais fecundas e mais brilhantes na história das letras medicas brasileiras. Expoente e orgulho da nossa raça, sua vida publica de 15 annos foi assignalada por feitos notáveis que se succederam ininterruptamente, cada qual de maior monta e deram vigoroso impulso ao progresso nas sciencias e na vida econômica do Brasil. A natureza dotou-o das mais preciosas qualidades de realizador, de systematizador, de administrador, que elle, patrioticamente, poz ao serviço de sua pátria para engrandecel-a.” [Relato de Egydio Salles Guerra]

O atraso
“Quando Rodrigues Alves deixou o governo, todos os seus principaes auxiliares foram acompanhal-o até Guaratinguetá, sua cidade natal. Na estação, por entre os figurões que se comprimiam em redor do glorioso ex-presidente, reinava certa balburdia. Todavia, o especial partiu á hora aprazada, e exactamente nesse momento um cidadão retardatário tomou o comboio, dirigindo-se para o interior de um dos carros. Ao vêl-o, o chefe de trem advertiu-o de que alli não havia logar para intrusos, e sem mais delongas fechou-lhe a porta, dexando-o do lado de fora.Passado algum tempo, por mero accaso, um dos graúdos viajantes encontrou de pé, na plataforma do vagão, aquelle vulto que não lhe era de todo desconhecido. Approximando-se reconheceu-o:

- O Sr. aqui?

E correu a chamar o chefe de trem, exprobrando-lhe a desconsideração feita a uma das figuras mais eminentes do quadriênio findo.

Humilde, tremulo, o funcionário desfez em desculpas, affirmando que não conhecia pessoalmente o Dr. Oswaldo Cruz. Este, porém, tranquillisou o pobre homem, felicitando-o pelo cumprimento do dever, pois o único culpado daquella situação era elle proprio, que não havia trazido as credenciais necessárias para a entrada no especial de luxo.”

[Relato de Ezequiel Dias]

A surpresa mineira
“Tambem Oswaldo, n’uma excursão pelo interior de Minas, ao passar por uma fazenda, resolve pedir uma hora de sombra e repouso. Recebem-n’o cordialmente. E, como é de praxe, servem-lhe o bom café, symbolo da hospitalidade sertaneja. Mas não consta que alguém tenha deixado cair a salva das chicaras, como faria qualquer archiduqueza russa. É certo, porem, que a dona da casa, ao saber que tem sob o seu tecto o grande brasileiro, corre aos seus aposentos trazendo um nédio e bochechudo pimpolha, apresentando-o cheia de orgulho e felicidade;

- Meu filho. Chama-se OSWALDO... por sua causa...”

[Relato de Ezequiel Dias]

Resiliência
“Por occasião da bernarda que tomou por pretexto a lei de vaccinação obrigatória, que Dantas Barreto qualificou de “farça mal representada”, a residência de Oswaldo Cruz, então á rua Voluntários, foi apedrejada repetidas vezes durante a noite. Como havia em casa senhoras e crianças, amigos que o rodeavam, aventaram a idea de uma retirada prudente pelos fundos do prédio, quando o ataque se tornou mais serio. Oswaldo Cruz, appatentemente calmo, repetia que o seu dever era não retirar-se e sim ficar.

Fez-se-lhe ver que estando a revolução na rua, a casa podia ser invadida e que seria prudente a retirada das senhoras. Estas por sua vez consentiriam em sahir com elle. Para que o fizessem foi preciso convencel-as de que Oswaldo Cruz aguardava apenas uma imaginaria ordem do Governo, que não devia tardar, e que as seguiria logo depois.

Não sahiu. – Permaneceu em casa até de manhã, hora em que seguiu para o palácio do governo.

Nessa mesma quadra agitada, ao retirar-se Oswaldo Cruz da secretaria da Justiça, onde assistira á reunião de jurisconsultos que deviam dar cunho jurídico ao Codigo Sanitario que formulára, chamado de “torturas”, multidão compacta e hostil pejava a praça Tiradentes. O Ministro Seabra, que também se retirava, offereceu-lhe logar no seu carro e outras garantias de segurança; elle agradeceu e, só, em seu vehiculo, varou a praça por entre vaias e apupos.”

Nos grandes actos de Oswaldo Cruz, houve sempre um traço forte de nobreza, de dignidade e de coragem. “Thue recht und scheue memand”, que se pode traduzir: “Faze o que deves aconteça o que acontecer” – era a máxima a que mais se atinha e que mais repetia.”

[Relato de Egydio Salles Guerra]

Homenagem de um amigo
“Oswaldo Cruz – impressionava à primeira vista pela distinção de sua pessoa. Cabelos abundantes, longos, um tanto rebeldes, mas ondeados em direções diversas, davam-lhe à cabeça aspecto-artístico, mesmo romântico. Ligeiro sorriso permanente comunicava-lhe à fisionomia ar atraente de bondade. Olhar aveludado, sereno, profundo, de pensador. A doçura do seu semblante dissimulava uma vontade de ferro, de não torcer nem quebrar, atenuada, porém, pela delicadeza de suas maneiras, pela suavidade de sua voz. Ouvia mais do que falava, não falava alto, não discutia, não se exaltava. Não dava ordens, pedia por favor. Pouco comia, apreciava mais doces e confeitos. Na aplicação das leis de higiene, que são eficazes somente quando rigorosamente cumpridas, obtinha a submissão dos rebeldes pela persuasão, pedindo-lhes o auxiliassem na sua árdua missão, advertindo-os de que o não cumprimento de epidemias quase extintas, e o mal afetar até pessoas da casa dos próprios recalcitrantes. Porque reclamava o estricto cumprimento das leis sanitárias, muitos o tinham por despótico e prepotente. Reclamava, como o fervoroso crente na ciência, que tem a volúpia de ver realizados, os planos científicos que formula. Não requestava a popularidade, não transigia para agradar. Era benevolente e justo. Acolhia e atendia a quantos o procuravam, e estes, terminada a audiência, retiravam-se surpreendidos do trato brando e delicado daquele tirano singular. Era uma espécie de administrador com que não estávamos familiarizados. Jamais a ciência médica experimental teve entre nós cultor mais probo e apurado, e que mais precocemente se revelasse tal. O primeiro produto que lhe saiu das mãos – o soro antipestoso – recebeu logo a consagração de – ótimo – das autoridades estrangeiras, de maior tomo; sua administração como higienista, a organização do Instituto de Manguinhos, as descobertas ali realizadas, merecem uma apoteose inaudita – o primeiro prêmio do Congresso de Berlim, entre 123 expositores, dos países mais cultos. Nunca se viu no Rio de Janeiro atividade nos serviços de higiene, como durante a administração Oswaldo Cruz. Naquele tempo, em todos os bairros da cidade, cruzavam em direções diferentes, veículos repletos de homens vestidos de caqui, cruz vermelha no boné, munidos dos petrechos do serviço, na sua penosa faina de expurgadores de habitações infectas e infectadas. As epidemias que o ilustre higienista extinguiu, as vidas que poupou granjearam-lhe o renome de “grande benfeitor da humanidade”, de ser a personalidade que “encarna o Brasil moderno saneado”; dele se disse que “honrando sua pátria com a extinção da febre amarela, honrou o continente americano”; que “com só tentar imitá-lo, se nos dignifica e enche a vida”; e que o Brasil foi considerado “nação feliz” por tê-lo produzido. O higienista Stewart, da marinha americana, depois de se inteirar por si, dos pormenores da obra sanitária de Oswaldo Cruz, e de sua influência sobre o desenvolvimento econômico e sobre o progresso do Brasil, opinou que “uma estátua de ouro maciço, de tamanho natural na praça principal do Rio de Janeiro representaria, apenas, uma parte da imensa gratidão que nós brasileiros devemos à memória do grande saneador”. Oswaldo Cruz consumiu-se, por excesso de trabalho, no serviço da pátria, desapareceu prematuramente aos 44 anos e meio. No último transe, sofreu, sereno, sempre lúcido, com inexcedível estoicismo, as penosas fases de uma uremia bulbar lenta, com crises de contraturas dolorosas, soluço persistente, que o martirizaram e o aniquilaram. Grande até morrer. O conjunto harmônico das raras qualidades de Oswaldo Cruz: força de trabalho (10 a 14 horas diárias); patriotismo até o sacrifício da saúde e da própria vida, suas qualidades morais – nobreza de caráter, espírito de justiça, desinteresse, correção de atitudes designam-no para modelo das novas gerações.”

[Relato de Egydio Salles Guerra]

Incógnita
“Veste-se cuidadosamente, com elegância ao gosto de 80 a 90. Nos tempos de jovem preferia os costumes pretos, elegantes gravatas e bom talhados paletós. Fora de casa usa invariavelmente uma comprida e elegante sobrecasaca e um “Plastron” branco. Usualmente fala em voz baixa, que logo revela a tranquila auto-confiança do seu estado de animo; sua absoluta honorabilidade e confiança e sua inabalável tenacidade, com a qual perseguia os resultados do seu trabalho cientifico e que o induzia a declinar qualquer influencia exterior nesta causa, uma vez que estava certo de seus caminhos. Mesmo em situações perigosas, em conflito com grosseiros, estúpidos e maliciosos adversários, não perde nunca sua compustura e sangue frio, nunca eleva sua voz, nem mesmo no tumulto das disputas públicas e das lutas. Por fim, a enfermidade mostra seus sintomas na sua fisionomia e comportamento, apesar de ele cuidadosamente procurar esconder isto dos circunstantes. Para sua família, seus amigos e companheiros de trabalho ele é um modelo de bondade de coração e de cuidado.Para os que o ofendem ele mostra um auto controle, uma frieza reservada e uma polida firmeza. Todo seu pensamento está possuído pelo seu infatigável trabalho, para cujo resultado, uma vez seguro, ele se aferra obstinamente. É modesto e de uma acentuada bondade para as pessoas socialmente inferiores a ele; da antiga polidez brasileira para com seus superiores.”

[Relato de autor e data desconhecidos, presente no acervo da COC/Fiocruz]

O medo
“A propósito vamos, para terminar, referir uma lenda árabe, que nos trará bons ensinamentos:

Vindo do Cairo caminhava, margeando o Nilo, um árabe, que ia commerciar no interior do Egypto. Em direção apposta, procurando a cidade, trotava um magro camêlo, no qual ia acocorada uma velha, de aspecto repugnante, cabellos emaranhados, tez denegrida pelos soes tropicaes. O camêlo trotava á toda a pressa e passando pelo árabe cahe e lança por terra a velhinha, que ficou fortemente contundida. Approximou-se d’ella rápida e solicitamente o árabe que com todo o desvelo, curou-lhr os ferimentos e ajudou-a a subir para a corcova do mehari, que paciente, esperava a sua carga. Uma vez encarapitada, a megera, desfez-se em agradecimentos e perguntou a seu salvador o que desejava em troca de tão relevantes serviços.

- Quem és, redargiu o árabe, e o que pódes me dar em troca do serviço que te prestei?

- Sou a peste negra, respondeu a velha; vou para o Cairo, onde encontrarei com que matar a fome que me devora, pois ha muito tempo não como; dize o que queres, porque meu estomago já não póde esperar.

A tal revelação cahiu o árabe transido de medo e de joelhos implorou a sua perigosa interlocutora que poupasse a vida a seus patrícios. Não te poderei completamente satisfazer, disse a peste, pois que morreria de fome; juro-te, porém, que só sacrificarei vinte daquelles por quem intercedes. O árabe agradeceu a grande concessão que acabava de ser-lhe feita e continuou a sua marcha. A peste dirigiu-se a galope para o Cairo. No dia seguinte recebeu o árabe noticias da cidade e por ellas soube que a peste negra tinha victimado na véspera vinte pessoas. O seu coração bondoso expandiu-se de alegria e dormiu satisfeito de ter livrado os seus irmãos da terrível moléstia. Mas, qual foi o seu espanto e indignação quando no dia seguinte, recebendo novas notícias, soube que morriam no ainda Cairo centenares de pessoas. Immediatamente partiu para a cidade, procurou a velha interpellou-a acerca do facto. Com toda a calma levantou-se a peste, que dormia, e disse-lhe:

- Meu filho, cumpri a promessa que te fiz, só matei vinte; os outros morreram de medo".

[Lenda árabe reproduzida por Oswaldo Cruz no trabalho “Causas e meios de prevenção do Cholera”, que assinou com o pseudônimo de Ignarus]



Confira outros relatos sobre:

Voltar
                                                                                                                          

Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz)
Av. Brasil, 4365 - Manguinhos - Rio de Janeiro - RJ - Brasil