Publicação do Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz - 08/06/2006

 

Projeto multidisciplinar do IOC avalia impacto da construção de hidrelétrica sobre meio ambiente e saúde humana

A construção de usinas hidrelétricas – principal fonte de energia do sistema elétrico brasileiro – pode provocar drásticas mudanças ambientais e conseqüentes alterações na dinâmica populacional de vetores de parasitos, capazes de desencadear focos ou surtos de diversas doenças. Por isso, a avaliação prévia dos impactos de empreendimentos como estes, ação recomendada tanto pela Organização Mundial de Saúde (OMS) quanto pela Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, é fundamental para a preservação do meio ambiente e da saúde humana. Sob essa perspectiva, o Instituto Oswaldo Cruz (IOC), por meio de uma equipe multidisciplinar de pesquisadores, é freqüentemente solicitado para avaliar riscos e indicar, quando necessário, a demanda por vigilância epidemiológica específica. Iniciativas desse porte foram realizadas nas hidrelétricas de Tucuruí (PA), Balbina (AM), Samuel (RO), Itaipu (PR), Manso (MT), Corumbá I (GO) e Serra da Mesa (GO). Desde 2004 um projeto semelhante está em curso em Tocantins, relacionado à usina Enerpeixe, em fase final de implantação.

Laboratório de Malacologia
Através de pesquisa de campo, projeto multidisciplinar do IOC avalia impacto ambiental da construção de uma usina hidrelétrica no município de Peixe, TO

Para monitorar as condições naturais da região e compará-las às alterações provocadas pela construção da hidrelétrica, uma equipe composta por pesquisadores do Laboratório de Malacologia, Laboratório de Triatomíneos, Laboratório de Transmissores de Leishmanioses, Laboratório de Díptera e Laboratório de Simulídeos e Oncocercose realiza visitas bimestrais ao município de Peixe (TO), com o objetivo de mapear ecologicamente a região. A multidisciplinaridade da equipe permite que cada grupo dedique-se à observação de vetores específicos, o que contribui para formulação e aplicação de medidas de controle mais eficientes.

“Para avaliar o impacto ambiental provocado pela construção de uma hidrelétrica e apontar os principais riscos e cuidados necessários realizamos um estudo de longo prazo, dividido em três etapas, que permite o acompanhamento da fauna e flora locais antes, durante e depois da construção da usina e da formação do lago”, descreve a bióloga Silvana Thiengo, coordenadora do projeto em Tocantins e pesquisadora do Laboratório de Malacologia do IOC. “Os estudos sobre esquistossomose e outras parasitoses transmitidas por moluscos em áreas impactadas são pioneiros no país e relevantes sob o ponto de vista epidemiológico. Como a doença está em expansão no Brasil, a construção de usinas é um fator preocupante, pois além de criar condições propícias ao desenvolvimento do molusco vetor, atrai migrantes e turistas, às vezes provenientes de áreas endêmicas”, a pesquisadora acrescenta. Esse procedimento gera resultados que vão além da vigilância epidemiológica, pois contribui para o conhecimento da biodiversidade da área central do Brasil, ainda muito pouco estudada. Além de estudos qualitativos e quantitativos das espécies de importância médica, é realizado o treinamento de técnicos de saúde dos municípios afetados, bem como um trabalho de educação em saúde com a população local.

Parcerias com outros centros de pesquisa também contribuem para o avanço do conhecimento científico. “Duas colaborações, uma internacional e outra nacional, estão em curso no projeto”, apresenta o entomólogo Anthony Erico, pesquisador do Laboratório de Díptera do IOC. “Uma, em parceria com o Centro de Pesquisa para Vacinas para Doenças Infecciosas da Escola de Medicina da Universidade de Massachusetts, vai estudar a capacidade vetorial de mosquitos. Outra, firmada com o Departamento de Entomologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pesquisará a utilização de formas imaturas de libélulas no controle biológico de mosquitos”, sintetiza.

Anthony Érico
A alteração do ambiente áquatico pode provocar o aumento de populações de insetos vetores de doenças

O pesquisador Maurício Vilela, do Laboratório de Transmissores de Leishmaniose do IOC, avalia a prevalência de insetos flebotomíneos na região. “O projeto vem contribuindo significativamente para o conhecimento da fauna de flebotomíneos na região, ainda pouco descrita na literatura. Apesar de ter a conclusão prevista somente para 2008, cerca de 50 espécies já foram registradas no Estado, além da identificação de uma ainda não descrita. Assim, agregamos maior quantidade e qualidade de informações que servem de subsídios para as ações de vigilância e controle por parte de instâncias estaduais e municipais”, o entomólogo descreve, destacando como o trabalho contribui para o mapeamento da biodiversidade da região.

Anthony Érico
A análise da prevalência de espécies vetoras na região contribui para o controle de doenças e para a ampliação do conhecimento da biodiversidade local

Resultados preliminares já permitem aos pesquisadores inferir sobre potenciais espécies vetoras, como a Lutzomyia whitmani – principal transmissor no Estado da Leishmania braziliensis , causadora da leishmaniose cutânea, e vetor também do parasito Leishmania shawi , até então restrito à região amazônica. A leishmaniose cutânea é uma doença infecciosa não contagiosa que provoca úlceras na pele e mucosas e está em expansão geográfica: segundo dados do Ministério da Saúde, na década de 80, 20 Estados do país apresentavam casos da doença; em 2001, ela já havia se espalhado para todo o Brasil.

Para Maurício, a iniciativa do IOC é fundamental para que medidas de controle epidemiológico possam ser implementadas de forma eficiente. Com esse intuito, o pesquisador realiza ainda um outro projeto, em parceria com a Secretaria de Saúde do Estado do Tocantins (Sesau-TO), para o controle das leishmanioses nos municípios de Porto Nacional, Guaraí, Araguaína, Aragominas e Tocantinópolis. O objetivo é assessorar o Programa Nacional de Leishmanioses da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) e relacionar os casos da doença a diferentes questões, além da construção de hidrelétricas: regiões impactadas por projetos agrícolas, sobretudo os que envolvem soja, cujo plantio está em franca expansão; áreas de assentamento; e a ocupação urbana desordenada.

“Existem poucos dados na literatura científica sobre a prevalência de flebotomíneos e os ciclos de transmissão de leishmanioses no Tocantins, uma unidade federal criada há pouco tempo, que sofre diferentes impactos ambientais e abriga um contingente populacional oriundo de diferentes regiões do país. Por isso, acredito que nossos estudos trarão importantes contribuições ao Estado”, Maurício avalia.

Segundo a entomóloga Teresa Cristina Gonçalves, que integra o Setor de Morfologia e Ultraestrutura de Artrópodes do mesmo Laboratório e coordena no projeto o grupo de estudo sobre triatomíneos e isolados silvestres de tripanossomatídeos, conhecer e estudar a fauna dos triatomíneos no estado de Tocantins, ao longo da construção da hidrelétrica, vem possibilitando avaliar a dinâmica das populações, gerando informações para os trabalhos de vigilância epidemiológica, monitoramento e controle. "Durante o primeiro ano de pesquisa realizamos, paralelamente, junto à população, o trabalho de conscientização sobre conhecimento e o risco de colonização das populações silvestres de triatomíneos", comenta a pesquisadora, que acredita na importância da parceria da comunidade com os Órgãos de Saúde para o controle destes insetos. "Os resultados obtidos antes, durante e após o enchimento do reservatório do Empreendimento ampliarão o conhecimento da dinâmica das populações de triatomíneos em áreas sob influência de impacto e de intenso fluxo migratório", conclui.

Anthony Érico
Para avaliar o impacto ambiental da construção da usina hidrelétrica no Tocantins, pesquisadores do IOC monitoram fauna e flora locais antes, durante e depois da obra 

A escassez de conhecimento sobre espécies vetoras de doenças endêmicas na região é um desafio também para a equipe do Laboratório de Simulídeos e Oncocercose do IOC, envolvida no projeto. “A diversidade de simulídeos no Tocantins ainda é pouco conhecida e todas as doenças relacionadas a eles estão intimamente ligadas aos ambientes hídricos que ocupam”, apresenta Marilza Herzog, chefe do Laboratório e coordenadora do estudo de simulídeos no projeto. A oncocercose, popularmente conhecida como “cegueira dos rios”, é uma doença infecto-parasitária não necessariamente letal e de extrema de importância não só para a saúde pública, mas também para a economia: em sua forma mais grave causa cegueira irreversível e atinge a população em sua faixa etária mais produtiva. A oncocercose é a segunda causa de cegueira no mundo e ocasiona dermopatias graves. Seu agente etiológico é a filária Onchocerca volvulus, transmitida ao homem por borrachudos, insetos da família Simuliidae que se reproduzem sobretudo em rios. Daí a importância da avaliação do risco da construção de hidrelétricas.

“O estudo dessas espécies, sua distribuição e o desenvolvimento de métodos biológicos de controle fornecerão o conhecimento da estrutura bioecológica e epidemiológica de problemas relativos ao desequilíbrio ambiental e indicarão métodos de intervenção que possam minimizar o impacto sobre a população humana local”, a pesquisadora justifica. O impacto ambiental decorrente da construção de barragens – prática cada vez mais comum no Estado, seja pelo represamento para uso local ou pela formação de grandes lagos com múltiplas finalidades – altera o ciclo de vida desses insetos, intimamente ligados aos ambientes hídricos (córregos, rios, corredeiras e cachoeiras). Esse impacto pode influenciar a ocorrência de potenciais vetores da oncocercose na região, onde os rios funcionam como fator de aproximação entre a população e os transmissores e estabelecem um elo entre as comunidades ribeirinhas e a doença.

Laboratório de Simulídeos e Oncocercoses
Pesquisadora do IOC realiza coleta de
simulideos para análise em laboratório

“Outra doença relacionada aos simulídeos é o Fogo Selvagem, um dos tipos do Pênfigo Foliáceo auto-imune crônico e progressivo que provoca dermatoses crônicas, caracterizadas pelo aparecimento sucessivo de bolhas e vesículas na pele, e pode ser fatal. Aparentemente, o quadro clínico da doença é provocado por picadas de borrachudos, que desencadeiam um tipo de reação imunológica que resulta nas dermatoses”, Marilza alerta. Na década de 70, a doença ficou conhecida como "Síndrome de Altamira", quando migrantes do Sul do país se instalaram em agrovilas em Altamira, no Pará.

Em integração ao projeto, o pesquisador Arlindo Serpa, do mesmo Laboratório, estuda os efeitos da construção de barragens sobre insetos aquáticos a partir do levantamento da fauna associada aos criadouros de simulídeos. Ao inventariar essas espécies, Serpa constatou que a obra pode levar ao aumento da concentração de borrachudos e outros vetores aquáticos na região e ocasionar surtos de doenças. “As espécies associadas aos simulídeos são muito importantes para o equilíbrio ecológico. Muitas delas são predadoras de insetos vetores e funcionam como um controle natural de doenças, sem agredir o ambiente. O aumento do nível do rio, que é o resultado final do processo de barragem, modifica as características naturais do ambiente aquático e afeta as espécies que o habitam. Sem predadores, a quantidade de borrachudos e de outros insetos tende a crescer na região”, o pesquisador alerta.

Laboratório de Simulídeos e Oncocercoses
O impacto ambiental causado pela construção da hidrelétrica pode alterar a dinâmica de insetos vetores e desencadear surtos de diversas doenças

Outra pesquisa do Laboratório que avalia a formação do lago da hidrelétrica é realizada pelo ecólogo Ronaldo Figueiró, que apresentará os resultados do estudo em sua tese de doutorado. A partir da avaliação do impacto da obra sobre as populações de simulídeos, Ronaldo vai comparar as amostras coletadas antes e depois da construção da barragem, para analisar a abundância da diversidade de larvas e verificar a perda de biodiversidade. “Ao observar como a formação do lago impactou a estrutura da comunidade de larvas de simulídeos poderemos ter uma idéia de como impactou o restante dos organismos aquáticos. Os simulídeos funcionam como elos da cadeia alimentar, porque grande parte das larvas de insetos presentes no rio se alimentam da matéria orgânica excretada por eles. O impacto sobre a espécie, então, resultaria em efeito dominó sobre outras espécies aquáticas”, Ronaldo expõe.

Marilza ressalta que o projeto está de acordo com as resoluções da ECO-92, que recomendam o conhecimento da diversidade de insetos vetores no Brasil e a avaliação do efeito de alterações ambientais sobre a biodiversidade e a saúde humana. “O projeto é importante porque a construção de grandes empreendimentos em regiões pouco povoadas provoca um grande fluxo migratório de população humana que em conjunto ao impacto ambiental pode resultar no surgimento de diversos tipos de doenças – sobretudo as com vetores ligados à água. Nossos resultados servirão de base para a vigilância do controle e do aparecimento de novas enfermidades”, conclui.

Por Bel Levy

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