Publicação do Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz - Ano XIII - n0 28 - 13/09/2007

 

Bactéria presente no tubo digestivo de barbeiros pode ser aliada no combate à doença de Chagas

Estudo mostra que microrganismo naturalmente presente no inseto transmissor é capaz de destruir o Trypanosoma cruzi

Parece ironia da natureza, mas a chave para controlar a transmissão da doença de Chagas pode estar presente justamente no inseto que transmite o protozoário para o homem. Resultados recentes de uma pesquisa desenvolvida no Instituto Oswaldo Cruz (IOC) em colaboração com o Instituto Pasteur, na França, sugerem que a bactéria Serratia marcescens, que faz parte da flora bacteriana natural do tubo digestivo de algumas espécies de barbeiros, é capaz de lisar o Trypanosoma cruzi – isto é, de romper sua membrana e alterar a estrutura do T. cruzi, anulando o poder de infecção do parasito. Parte da pesquisa foi publicada na última edição da revista científica Experimental Parasitology.

Gutemberg Brito
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A partir de cepas da bactéria enviadas pelo Instituto Pasteur, pesquisadores do IOC estudam seus mecanismos de ação em busca de novos alvos terapêuticos para a doença de Chagas

Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), a doença de Chagas afeta 18 milhões de pessoas em todo o mundo, sobretudo em países em desenvolvimento. Não existe vacina eficaz para proteção contra a infecção e a cura, que se restringe a algumas cepas do parasito, pode ser alcançada somente na fase aguda da doença. A novidade promissora tem animado os pesquisadores e pode ser o ponto de partida para a definição de mecanismos capazes de interromper a infecção do inseto vetor e, conseqüentemente, reduzir o ciclo de transmissão.

“O ciclo de transmissão da doença de Chagas tem início quando um barbeiro, que é um inseto hematófago, suga o sangue de uma pessoa infectada pelo T. cruzi, tornando-se portador e vetor do parasito, que permanece alojado em seu tubo digestivo. A transmissão do T. cruzi acontece quando o barbeiro infectado pica outra pessoa e deposita fezes contaminadas com o parasito sobre a ferida resultante da picada. Se a bactéria presente no tubo digestivo do barbeiro for realmente capaz de destruir o T. cruzi, o barbeiro não será infectado, interrompendo o ciclo de transmissão da doença, uma vez que o inseto não depositará o parasito junto as fezes durante a picada”, descreve o bioquímico Eloi Garcia, pesquisador do Laboratório de Bioquímica, Fisiologia de Insetos do IOC, que integra o grupo de pesquisas brasileiro sobre a interação entre o T. cruzi e a microbiota do tubo digestivo do barbeiro, coordenado pela pesquisadora Patrícia Azambuja, chefe do Laboratório.

Wanderley de Souza e Sergio Seabra/UFRJ
A imagem exibe recorte do tubo digestivo do T. cruzi com cepas da bactéria Serratia marcescens (pontos mais claros)

“Comecei a investigar o papel da bactéria Serratia marcescens no trato digestivo de triatomíneos [família de insetos da qual o barbeiro faz parte] há 17 anos quando, em cooperação com o Instituto Max Planck de Bioquímica, na Alemanha, estudava fatores chamados hemolíticos, que são responsáveis pela lise de hemácias durante o processo digestivo destes insetos. Fiquei surpresa ao observar que o principal fator de desintegração de hemácias era o contato com esta bactéria, mas tive que engavetar o trabalho porque naquela época não existiam instrumentos científicos capazes de verificar com precisão a minha hipótese. Anos mais tarde, surgiram trabalhos mostrando que algumas bactérias presentes no tubo digestivo de insetos possuem componentes capazes de lisar outros microrganismos. Em 2004, retomei meus estudos nessa área, com base na hipótese de que se uma bactéria é capaz de desintegrar hemácias, pode fazer o mesmo com parasitos, como o T. cruzi”, Patrícia lembra. “Isso é mais uma prova de que a ciência é um investimento de longo prazo em uma idéia e de que as principais descobertas dependem do levantamento de hipóteses criativas e da persistência dos cientistas”, Eloi considera.

Motivado por estas considerações, o estudo atual baseia-se na observação de que a Serratia marcescens apresenta dois princípios tóxicos: um deles, caracterizado como fator hemolítico, desintegra hemácias presentes no tubo digestivo de insetos hematófagos, facilitando a digestão do sangue. O outro princípio, que o estudo franco-brasileiro procura comprovar, parece ser capaz de romper a membrana de microrganismos presentes neste ambiente, como o T. cruzi.  

Para compreender os mecanismos bioquímicos e fisiológicos que condicionam a toxicidade da bactéria para o parasito, pesquisadores do Laboratório de Bioquímica e Fisiologia de Insetos do IOC avaliam in vitro a interação entre os microrganismos, a partir de duas cepas-padrão da bactéria enviadas pelo Instituto Pasteur – uma produtora de prodigiosina, um pigmento vermelho, e outra não. Resultados preliminares indicam que apesar de ambas as cepas serem hemolítcas, somente uma – a pigmentada – foi capaz de desintegrar o T. cruzi. Agora, pesquisadores brasileiros e franceses estudam mecanismos de ação da bactéria para verificar se o pigmento avaliado no experimento é de fato o responsável pela lise do parasito ou se existem outros fatores envolvidos neste processo.

Para entender como o T. cruzi pode sobreviver à presença da bactéria Serratia marcescens, a estudante Daniele Pereira de Castro estuda esta interação em seu doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Biologia Parasitária do IOC. “Nossa hipótese para justificar a destruição do T. cruzi pela presença da Serratia marcescens é a possível sensibilidade das fimbrias da bactéria, estruturas filamentosas presentes em sua superfície, a um carboidrato localizado externamente à membrana do parasito, a D-manose, que parece expor o protozoário à ação da bactéria mediante a adesão dos microrganismos”, Daniele aponta.

Gutemberg Brito/ IOC e Wanderley de Souza e Sergio Seabra/UFRJ
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A doutoranda Daniele Pereira de Castro observa a interação entre o T. cruzi e a bactéria Serratia marcescens para descobrir como o parasito pode sobreviver à presença do microrganismo

“Nossos estudos indicam que existe pelo menos uma variante da bactéria Serratia marcescens que coloniza o tubo digestivo de triatomíneos, onde o T. cruzi se desenvolve, capaz de lisar o parasito. Nossa expectativa é que, nos próximos cinco anos, possamos obter em conjunto com o Instituto Pasteur, que realiza estudos de engenharia genética, linhagens modificadas da bactéria, produtoras ou não de pigmentos, que possam esclarecer seus mecanismos de ação sobre o parasito com a finalidade de obter novas drogas para o controle da doença”, Eloi adianta.

Bel Levy
13/09/2007

 

 

IOC - Ciência para a Saúde da População Brasileira