Contra a racialização do país

A tramitação no Congresso Nacional de dois projetos de lei que propõem a racialização da sociedade brasileira por meio da instituição de cotas raciais para o acesso ao Ensino Superior público (PL 73/99) e do estabelecimento de um Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000), reascende o debate sobre preconceito racial. O livro Divisões Perigosas – Políticas raciais no Brasil contemporâneo, organizado por Peter Fry, Yvonne Maggie, Marcos Chor Maio, Simone Monteiro e Ricardo Ventura Santos, que chegou às livrarias em maio, integra o posicionamento democrático e anti-racista de sociólogos, educadores, sanitaristas e economistas que defendem a universalização dos direitos sociais, independentemente de cor da pele, opção religiosa, orientação sexual ou gênero.

Livro

Nesta entrevista, Simone Monteiro, chefe do Laboratório de Educação em Ambiente e Saúde do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), discute como os polêmicos projetos de lei ameaçam a democracia social e aponta perspectivas anti-raciais para resolução das desigualdades sociais do país.

O livro critica o polêmico projeto de racialização da sociedade brasileira a partir da instituição de um Estatuto da Igualdade Racial e de cotas raciais no Ensino Superior. Qual a importância do debate público desta iniciativa para o fortalecimento da democracia no país?

O livro Divisões Perigosas – Políticas raciais no Brasil contemporâneo  tem o propósito de divulgar os argumentos de diversos membros da sociedade (intelectuais, militantes de movimentos sociais, cientistas de várias áreas) sobre as conseqüências negativas do processo de racialização em andamento no país, que em nome da justiça social concebe o preconceito racial como o principal eixo explicativo para a compreensão das desigualdades sociais e como foco central para definição de políticas sociais. A partir da carta pública Todos têm direitos iguais na República Democrática, entregue aos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal em junho de 2006, e da recente publicação do livro, pretendemos estimular um amplo debate público sobre a temática junto à população e ao Congresso Nacional, que será responsável pela votação dos projetos de lei referentes às cotas raciais em universidades públicas e ao Estatuto da Igualdade Racial.  

A igualdade de direitos – independentemente de cor da pele, opção religiosa, orientação sexual ou gênero – é princípio fundamental para o combate às desigualdades sociais. Como a aprovação dos referidos projetos de lei pode comprometer a garantia igualitária dos direitos sociais?

Ao criar e afirmar identidades raciais, os racialistas restauram o conceito de raça humana e estimulam uma diferenciação entre os supostos “grupos raciais” baseada na aparência. O conceito de raça humana foi criado pelo racismo científico e apesar de estudos no campo da biologia, especialmente da genética, afirmarem que não existem raças humanas, o conceito ainda é utilizado para separar e discriminar grupos sociais. Neste sentido, propomos que, em vez de recuperar e reforçar o já questionado conceito de raça, temos o dever de combater o preconceito e a discriminação racial pela afirmação do direito de todos ao ensino, ao trabalho e à saúde, por meio de investimentos em programas e políticas públicas e na avaliação de seus impactos. Defendemos, portanto, o princípio da igualdade política e jurídica das pessoas. Ilustra essa perspectiva o atual Programa de Desenvolvimento da Educação, apresentado pelo Ministro da Educação, que prioriza investimentos na melhoria da educação básica, cria indicadores para acompanhar a qualidade do ensino básico nos Estados e municípios, dentre outros aspectos que incluem o Ensino Superior.

O Brasil é um país culturalmente caracterizado pela mestiçagem. Como os projetos de lei criticados pelo livro ameaçam a valorização da pluralidade cultural brasileira?

Ao separar as pessoas em “grupos raciais”, por meio da polarização da sociedade brasileira em “brancos” e “negros” e do estabelecimento de diferenciações de direitos e oportunidades em educação, saúde e mercado de trabalho, as políticas públicas racializadas podem estimular a intolerância racial. Fatos recentes sugerem que nossa preocupação não é infundada: ataques aos organizadores do livro Divisões Perigosas – Políticas raciais no Brasil contemporâneo foram divulgados na internet; a ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, afirmou em entrevista à BBC que “não é racismo quando um negro se insurge contra um branco”; o antropólogo Júlio César de Tavares, da Universidade Federal Fluminense, afirmou em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo que "chega um momento em que o diálogo se esgota (...) Acho que o racista na rua tem de apanhar”. Considerando as especificidades do nosso país, como a positivação da mestiçagem e a falta de leis sobre discriminação racial ao longo de nossa história republicana, o acirramento da cisão racial seria uma grande perda para a sociedade brasileira.

Qual o risco de se racializar a questão da saúde no Brasil?  

A reiteração do determinismo biológico é um dos principais riscos das associações apressadas entre raça e saúde. No campo biomédico há uma intensa discussão sobre os desafios do uso dos conceitos de raça e/ou etnia na abordagem das doenças geneticamente determinadas e dos meios para se aferir as implicações do racismo sobre agravos à saúde. Segundo diversos estudos é preciso considerar os perigos de se legitimar o inconsistente conceito biológico de raça e reforçar o preconceito racial e prejudicar ações de prevenção e assistência na área da saúde.

 

Bel Levy
06/06/07