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O malacologista Wladimir Lobato Paraense acumulou a experiência de uma vida inteira dedicada à ciência. Reconhecido como um dos mais importantes especialistas em moluscos no mundo e responsável pela identificação dos caramujos vetores da esquistossomose, o pesquisador mais antigo da Fiocruz percorreu o Brasil e quase todo o continente americano em pesquisas de campo. Foi autor também da descoberta do ciclo exoeritrocitário da malária, primeira comprovação da existência do ciclo de vida dos parasitos causadores da doença antes do ingresso na corrente sanguínea. No IOC desde a década de 1940, Lobato foi pesquisador emérito do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fiocruz, onde desenvolveu linhas de pesquisa no Laboratório de Malacologia do IOC, referência nacional para o tema. O especialista faleceu aos 97 anos, no dia 11 de fevereiro de 2013, deixando uma enorme lacuna na ciência nacional.

“Nasci no Pará e me formei no curso de Medicina em Recife, em 1930. Fui aluno e trabalhei no laboratório de Aggeu Magalhães. Quando concluí o curso, fui indicado para bolsa de estudos em São Paulo, financiada pelo jornalista AssisChateaubriand. Iniciei a especialização em Anatomia Patológica na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Quando já havia uns três meses que estava em São Paulo, uma grande seca atingiu o Nordeste e teve início uma grande migração. Na cidade, haviam construído galpões para receber essa população e muitos morriam. Nesta época, de três em três dias eu fazia uma necropsia. Em uma dessas vezes, foi designado para mim o cadáver de uma moça alagoana, com cerca de 24 anos, linda, com a pele parecendo um marfim. Essa moça estava hospedada em um destes galpões, que chamavam de hospedaria de imigrantes, e havia sido internada na Santa Casa.

Iniciei a necropsia. Quando abri a barriga, percebi que o baço e o fígado estavam grandes e vi um verme próximo a esses órgãos. Sabia que se tratava de esquistossomose, mas como não havia registros da doença em São Paulo, meu orientador, Paulo Queiroz Telles Tibiriçá – que nunca quis muita conversa comigo –, discordou, chegando a alegar que se tratava de malária, em função do tamanho do baço e do fígado. Retruquei afirmando que não poderia ser malária porque, se fosse, o cérebro da moça estaria infestado de parasitos, e não era o caso. Quando falei que era esquistossomose, tive a impressão de que meu orientador nunca tinha nem escutado o nome.

Peguei umas placas, com soro fisiológico, e abri aquilo. Em meia hora, estava cercado de gente. O Luis Rey, que se tornou também pesquisador do IOC, era aluno em São Paulo naquela época e foi ele quem chamou o professor de parasitologia, o professor Pessoa. Correu a notícia, cerca de dez pessoas estavam observando a retirada do schitosoma, quase não consegui trabalhar. Em seguida, peguei aquele material todo, que era novidade por lá, e separei. A partir daí, sem nenhuma ajuda do meu orientador, resolvi fazer um trabalhão sobre esquistossomose. Quando cheguei ao final do primeiro ano de bolsa, Chateaubriand me chamou e me ofereceu mais um ano. Não aceitei.

Nesta época, Evandro Chagas tinha um instituto no Pará, onde foi estudar leishmaniose. Antes de me formar, ainda em Recife, presenciei a ida de vários colegas para o Instituto Evandro Chagas. Como não havia gente habilitada, ele passou a dar oportunidade para estudantes no último ano, que estavam se formando em medicina, como Hélio Guimarães. Fui convidado, mas não aceitei porque preferi ficar no Recife. Essa turma acabou ficando na Fiocruz. Um dos meus conhecidos da faculdade de Recife, da turma do Aggeu Magalhães, que sempre vinha ao Rio para consultar bibliografias, passou por São Paulo e me telefonou. Nos encontramos, falei da minha insatisfação em relação ao trabalho em São Paulo e contei que tinha uma tese sobre esquistossomose praticamente pronta. Um tempo depois, este mesmo amigo estava no Rio e me telefonou novamente. Disse que tinha falado com Evandro Chagas e que ele havia pedido que eu viesse até o Rio para encontrá-lo no Hospital Evandro Chagas, que naquela época era parte do Instituto Oswaldo Cruz. Cerca de um mês depois, peguei o trem e vim para cá. Trouxe minhas coisas, me hospedei em um hotel. Cheguei ao campus de Manguinhos, onde ficava o hospital. A esposa do Evandro, que trabalhava com ele, me disse que ele estava viajando, mas iria voltar ainda naquele dia, mas não para o hospital. Me deu o endereço da casa deles e pediu que o procurasse à noite. Fui. Ele prometeu que me apresentaria ao Magalhães Torres e me pediu que voltasse ao hospital no dia seguinte.

Evandro Chagas nunca me apresentou ao Magalhães Torres, mas voltei ao hospital e ele me ofereceu uma oportunidade. Me disse que tinha um negócio que não achava ninguém para fazer e me perguntou se eu poderia ajuda-lo por um mês. Havia aparecido a leishmaniose visceral no Brasil. Era uma doença que na Europa e na África o animal passava para o homem. Esta que apareceu aqui era do tipo do mediterrâneo, que dá em cão e é transmitida para o homem pelo flebótomo. O Evandro decidiu investigar essa doença nova no país. O Instituto formou uma equipe, que ele coordenava, para trabalhar nisso.

No antigo pavilhão Rockefeller eram feitas as viscerotomias, procedimento realizado para o estudo de febre amarela. Quando um paciente morria com poucos dias de febre, eles tiravam um pedaçinho do fígado para análise. Porém, nenhum pesquisador observava estas amostras no microscópio, como deveria. Cerca de 40 mil foram analisadas e, em muitas, constataram a presença de leishmania. A partir daí, Evandro passou a viajar o país, montou uma equipe para estudar todos os aspectos do problema. Realizaram um trabalho muito bonito sobre a leishmania visceral.

Evandro constatou a incidência da doença em diversos locais como Ceará, Rio Grande do Norte e Pará. A diferença foi que no Pará ele recebeu apoio do governo do estado para dar continuidade ao trabalho. Eles chegaram no lugar onde havia mais casos da doença, um lugar chamado Abaeté, para analisar primeiro os cães, depois os flebótomos e as pessoas que apresentavam algum sintoma. Constataram que nenhum cão estava infectado com o protozoário, mas eram achados casos humanos. Pensaram que poderia haver outro animal envolvido na transmissão, então saíram pela mata das redondezas e pegavam qualquer animal que aparecia, até aves. O resultado dessa incursão foi a reunião de mais mil frascos com pedaços de fígado desses animais.

Foi exatamente a análise desse material para a detecção da presença da leishmania que ele me pediu para fazer naquele período de um mês. Ele me mostrou e me disse: você já imaginou como seria importante descobrir de onde vem essa leishmania. Esse trabalho nunca terminou. Eu cheguei lá, comecei a olhar e não tinha leishmania. O que havia acontecido é que o protozoário não foi encontrado nas amostras dos cães porque, um ano antes, ocorreu uma epidemia nos cães de Abaeté, e a prefeitura da cidade matou todos. Então não tinha tempo para infectar essa nova população de cachorros.

Em 1939, a minha bolsa, que ainda era paga por Chateaubriand, acabou. Não queria voltar para o Recife porque fiquei sabendo que meus colegas que voltaram para lá não tinham sido bem recebidos. Então, Evandro Chagas passou a me pagar pela verba que ele recebia do Instituto. Permaneci com ele. No meio do ano, ele me chamou para dar aula em um curso sobre malária que o IOC estava oferecendo no Instituto Evandro Chagas, no Pará. Aceitei o convite e fui a Belém.

Em 1940, Evandro Chagas morreu em um desastre de avião na Baía de Guanabara. Fiquei apreensivo, pensando como iria me manter. Depois que o curso em Belém acabou, voltei para Manguinhos, e felizmente consegui uma bolsa no IOC. Em 1942, foi realizado um concurso. Eram 15 vagas e eu me lembro que cheguei ao local de inscrição na última hora: a porta se fechou logo que eu entrei, fui o último a me inscrever. Passei em quarto lugar e por aqui permaneci até me aposentar. Aliás, “semi-aposentar”, porque continuei trabalhando no Instituto. Neste período todo, fiquei longe do IOC, quando, em 1952, surgiu um problema em Minas Gerais, uma doença um pouco selvagem, que se manifestava na pele, criava bolhas, e ninguém sabia de onde ela vinha. Como na época de estudante fui interno no hospital de dermatologia, o diretor do IOC, Henrique Aragão, me mandou para lá para investigar. Cheguei em Minas e constatamos que era uma doença contagiosa. Se demorasse mais de meia hora para examinar o paciente, caíam pedaços de pele, escamas. Era algo horroroso. Naquela época tinham inventado a penicilina e o IOC passou a fabricá-la logo que ela foi descoberta. Testei como terapia e as pessoas foram curadas. Para resolver este problema, morei em Belo Horizonte por dois anos. Lá tinha um laboratório do IOC dentro da faculdade de medicina e, por isso, pude permanecer por este período.

Para entender por que fui designado para essa missão, é preciso voltar no tempo, na época em que cheguei ao Recife, ainda estudante. Cheguei lá com uma caixinha que tinha, com 50 lâminas de cortes histológicos coletadas ainda no Pará, quando trabalhei no laboratório da Santa Casa. E toda vez que aparecia um caso, uma autópsia, uma biópsia, que achava interessante, eu tirava uma lâmina para mim. Eu saí na metade do ano e perdi o semestre. Neste período, resolvi ir à faculdade no Recife para ver como era. Levei minhas lâminas. Cheguei lá, estava tudo fechado. No fim do corredor, tinha uma porta encostada, empurrei e vi que era um laboratório grande e tinha um camarada olhando no microscópio. Naquele tempo, microscópio não tinha luz, por isso ele estava de fronte à janela. Quando eu me aproximei, ele perguntou se estava procurando alguém. Olhou para minha caixa e perguntou se eram lâminas. Aí eu meti a mão, tirei uma lâmina e dei para ele. Ele perguntou o que era e eu respondi que era um corte de embrião de mamífero na altura do fígado, tinha retirado de um camundongo, que estava grávida. Ele me deu os parabéns por ter acertado e perguntou se tinha mais.

Tirei outra lâmina e entreguei, ele levou mais tempo para examinar e perguntou se eu conhecia o professor Jorge Lobo. Disse que não, mas que gostaria de conhecê-lo. Ele me disse que o Lobo ia gostar de ver minhas lâminas e que estaria na faculdade mais tarde. Fui dar um passeio e retornei. Na mesma porta, quando cheguei, um camarada me olhou e disse muito ansioso: ‘Você que é o Wladimir? Onde estão as lâminas?’ Era o professor de dermatologia da faculdade, Jorge Lobo. Esta história é muito engraçada porque um dia chegou um sujeito lá no hospital que ele dirigia e se internou. Este paciente vinha do interior de Rondônia, na Amazônia, com caroços no corpo, e o Jorge Lobo pegou este sujeito e trouxe aqui para o Rio, para Manguinhos, onde tinha um setor de micologia.  Eles investigaram, descobriram a causa, e foi chamada doença de Jorge Lobo. Bom, naquela segunda lâmina que mostrei ao pesquisador estava o segundo caso dessa doença. Eram pacientes do mesmo local, só que o dele foi para Recife e o meu foi para Belém. Quando esse caso caiu para mim, no Pará, fiz a biópsia, tentei inocular na cobaia e não pegou, tentei fazer cultura, mas também não pegou, era algo esquisito. No caso que chegou ao Jorge Lobo, aconteceu a mesma coisa, só que ele escreveu uma tese, trouxe o paciente a Manguinhos e a doença ficou registrada com o nome dele. Quando ele identificou esse segundo caso na minha lâmina, contei e vimos que foi tudo igual ao caso dele.

Depois que viu a lâmina, Jorge Lobo me chamou para ir ao hospital com ele, porque tinha algo para me mostrar. No hospital, ele tinha um grande mostruário, uma exposição de corpos em amônia. Ele disse: ‘Veja se tem algo parecido com o caso do Pará’. Eu apontei um deles, que era o caso dele. Ele saiu e voltou em seguida com um livro nas mãos, que era a tese dele, e me deu. Na dedicatória estava escrito: Ao meu novel auxiliar Wladimir, com meus cumprimentos. A partir daí, me tornei auxiliar dele, que passou a me chamar de Lobato, porque já existia um dermatologista com o nome de Wladimir Miranda, que Jorge Lobo tinha como um inimigo. Trabalhei com ele até o fim do curso. Fiz concurso para o Hospital Oswaldo Cruz de Recife e passei em primeiro lugar. Foi bom, porque tinha salário e me tornei interno, com casa e comida.

Voltando à história da doença misteriosa em Minas, depois de resolvido o caso, retornei a Manguinhos. Só fui a Belo Horizonte novamente na década de 60, para estudar leishmaniose. Nesta época, Adolpho Lutz costumava ir a Belo Horizonte no final do ano, por conta do grande calor que fazia no Rio de Janeiro. Em uma dessas viagens, ele encontrou um caramujo que lhe rendeu um trabalho importante, com a descrição de uma espécie nova. Sabendo disso, por curiosidade, eu saía no final de semana para coletar caramujos nas lagoas de Belo Horizonte. Coletei muitos e cheguei à conclusão de que não se tratava de uma espécie nova, mas de uma espécie que já havia sido descrita no Caribe. Então publiquei um trabalho sobre isso nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. Continuamos a coleta e fomos a Lagoa Santa, em uma região próxima a Belo Horizonte. Lá encontramos o caramujo que é o principal transmissor da esquistossomose. Todo o final de semana, as pessoas se banhavam e brincavam naquele lugar, tinham casas de veraneio. Aprofundamos o trabalho e coletamos muitos caramujos infectados. Publiquei o trabalho e fui convidado a apresentá-lo na Sociedade Médica de Minas Gerais. Depois que dei a palestra, as pessoas se voltaram contra mim, diziam que eu estava inventado coisas. Até os mais renomados professores de parasitologia concederam entrevistas afirmando que estávamos errados.

Em seguida, fiz o mesmo trabalho na lagoa do Parque Municipal de Belo Horizonte. E acabei descobrindo que eles abasteciam essa lagoa com a água de uma outra lagoa, que estava infestada de caramujos infectados. Publiquei também este trabalho, outra vez houve uma onda contra. Foi desta forma que comecei a me dedicar ao estudo da esquistossomose. Fiquei em Belo Horizonte por três anos. No último ano, instalaram o Centro de Pesquisas René Rachou e acabei montando um departamento de malacologia lá. No final de 1969, fui convidado a trabalhar na Universidade de Brasília, onde fiquei por cerca de cinco anos.

Depois disso, fui convidado para voltar a Manguinhos. Inicialmente, fiquei um pouco receoso porque não queria enfrentar desgaste com o trânsito do Rio de Janeiro. Para minha surpresa, colocaram à minha disposição a casa no campus, onde moro desde aquela época, há mais de três décadas. 

E está aí a minha história. Sou do quadro do IOC desde 1942, mas cheguei antes por aqui. Os princípios de Oswaldo Cruz, que estimulava a busca de uma boa base teórica, foram fundamentais para mim. No início, o pessoal vinha para cá para ter um lugar onde fazer uma tese. Se fosse boa e tivesse uma vaga, acabava ficando. Me sinto muito bem aqui, porque sempre faço o que acho que devo.”



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