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O vírus da Aids, 20 anos depois

Como o isolamento do HIV-1 no Brasil modificou a história da epidemia da Aids no país

Um Programa Nacional que é referência mundial em HIV/Aids e proporciona a distribuição gratuita de preservativos e medicamentos a toda a população brasileira; redes de monitoramento da resistência de pacientes à terapia antirretroviral que garantem a eficácia do tratamento e o aumento da sobrevida de pessoas vivendo com Aids; estudos promissores para o desenvolvimento de vacinas e novos esquemas terapêuticos. Há 20 anos, o cenário da epidemia de Aids no Brasil era outro. Um patógeno desconhecido, carregado de estigmas e preconceitos, infectava mais e mais pessoas, levando-as rapidamente a óbito – segundo dados do Ministério da Saúde, em 1987, cinco anos após a identificação da Aids no Brasil, 2.775 casos da doença já haviam sido registrados no país. Mais: comprometia a qualidade do sangue e hemoderivados utilizados em transfusões e desafiava cientistas, desorientados sobre como trabalhar em segurança com um agente tão perigoso. Apesar de todos os obstáculos, uma equipe multidisciplinar de jovens pesquisadores e estudantes do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), liderada pelo imunologista Bernardo Galvão, realizou pela primeira vez no Brasil e na América Latina o isolamento do vírus HIV tipo 1 (HIV-1), abrindo um novo capítulo na história da epidemia.

Foto: Instituto Pasteur

Acima, imagem do vírus produzida pelo Instituto Pasteur,
na França, uma das primeiras do mundo

“A Fiocruz assumiu o desafio de enfrentar a Aids em 1983, após a confirmação da doença no Brasil. Então, eu e um colega de minha equipe, o imunologista Cláudio Ribeiro, visitamos o primeiro paciente soropositivo brasileiro. Apesar do pouco conhecimento sobre a infecção, logo percebemos a potencialidade epidêmica da Aids e reconhecemos o grande problema de saúde pública que ela se tornaria. Por isso resolvemos enfrentá-la: para cumprir a missão da Fiocruz de responder às demandas de saúde da população”, apresenta Galvão, que à época era chefe do Departamento de Imunologia do IOC e atualmente coordena o Laboratório Avançado de Saúde Pública do Centro de Pesquisa Gonçalo Moniz (CPqGM/Fiocruz), unidade da Fiocruz em Salvador. “Naquela época, havia muito pânico e preconceito em torno da Aids. Sofríamos discriminação de colegas e outros pacientes por lidar com soropositivos, mas não desistimos. E isso só acontece com quem tem compromisso com a ciência e com a saúde da população brasileira”, confirma o médico Fernando Samuel Sion, integrante da equipe de Galvão, que desde a década de 1980 atua nos programas de pesquisa e acompanhamento de pacientes infectados e na formação de recursos humanos no Hospital Universitário Gaffrée e Guinle.

Foto: Genilton Vieira/IOC

O imunologista Bernardo Galvão liderou a equipe de cientistas que isolou o HIV-1 na América Latina

No início da década de 1980, o conhecimento internacional sobre a infecção era muito incipiente e os estudos limitavam-se a abordagens epidemiológicas e imunológicas. Quando franceses e norte-americanos isolaram o HIV-1 pela primeira vez no mundo, em 1983 e 1984, informações como a alta variabilidade genética do vírus foram reveladas e incitaram pesquisadores brasileiros a isolar o vírus circulante no país. A conclusão da tarefa era imprescindível à ampliação da pesquisa em Aids no Brasil: devido ao desconhecimento sobre o HIV-1, até o isolamento do vírus os estudos sobre a infecção versavam exclusivamente sobre as alterações imunológicas que a síndrome provoca no organismo humano. A partir de 1987, o acesso de pesquisadores ao vírus isolado permitiu a geração de conhecimentos sobre as cepas circulantes no Brasil, o que deu início a uma série de estudos moleculares, bioquímicos, antigênicos e filogenéticos do patógeno.

“O isolamento do HIV-1 no Brasil ratificou a necessidade de estudar os vírus circulantes no país e impulsionou a pesquisa científica na área, promovendo os primeiros estudos de epidemiologia molecular do patógeno. Conhecer o perfil genético das diferentes cepas do HIV-1 encontradas no país é importante porque permite, por exemplo, relacionar essas informações às manifestações clínicas dos pacientes e identificar as formas mais agressivas do vírus”, considera Sion.

“O isolamento do HIV-1 no Brasil representou, por um lado, a conclusão de uma série de pesquisas que o laboratório liderado por Galvão conduzia desde o início dos anos 1980, quando ainda sequer a etiologia viral da Aids era conhecida. A descoberta representa também o corajoso esforço de colocar em funcionamento as condições laboratoriais necessárias ao isolamento e cultivo do HIV-1, numa época em que pouquíssimos laboratórios do mundo faziam isso. Galvão e sua equipe deram visibilidade à pesquisa em Aids no país e sobretudo à pesquisa básica, o que abriu as portas para a posterior demonstração dos subtipos de HIV-1 circulantes no Brasil e para a formação de lideranças científicas no país”, sintetiza a imunologista Mariza Morgado, atual chefe do Laboratório de Aids e Imunologia Molecular do IOC e especialista em abordagem genética do HIV-1. Mariza aparece em quinto lugar na lista divulgada pelo Institute for Scientific Information (ISI), órgão internacional responsável por avaliar a relevância de periódicos científicos indexados, que destaca os 15 autores de artigos sobre HIV/Aids residentes na América Latina e Caribe mais citados em todo o mundo entre 2001 e 2005.