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Raro

Rui Barbosa definiu, no discurso em homenagem a Oswaldo Cruz, em maio de 1917, pouco após sua morte, que o cientista teve “a ventura extraordinária de ser um desses raros eleitos, um desses levitas consagrados à diminuição dos padecimentos humanos.” Os relatos indicam que esta raridade ia além da dimensão científica.

Ezequiel Dias conta que, mesmo nos momentos iniciais em Manguinhos, sua conduta era pautada por “nem uma phrase em tom alto; jamais uma admoestação violenta; as ordens eram dadas em voz baixa; as advertencias revertiam da brandura de um conselho; e até o cumprimento do dever era solicitado por favor, ainda quando se tratasse do mais rude dos serventes”. Oswaldo tinha, então, a responsabilidade de liderar os trabalhos técnicos para produção do soro e da vacina contra a peste bubônica. Henrique Aragão, que ingressou em Manguinhos em 1903, diz que, quando ocorria uma falha, “chamava com brandura a atenção para a mesma e com seus modos afáveis conseguia em geral os melhores resultados mas, também sabia ser enérgico quando necessário”.

Carlos Chagas, que ingressou em Manguinhos em 1904 e assumiria a diretoria do Instituto Oswaldo Cruz após a morte do cientista, relata sobre a personalidade daquele que chamava de “mestre”: “sereno e justo, possuindo unidade e fortaleza de caracter inimitáveis”. Diz que a “doçura de gestos” era um dos melhores traços de sua personalidade. O amigo Salles Guerra conta que Oswaldo Cruz “dirigia com doçura mas com firmeza. Não ordenava, recommendava ou pedia. Aos hesitantes procurava convencer pelo raciocínio, pela razão, a meia voz; desse modo, em pouco tempo o seu ascendente sobre os auxiliares era absolutamente oracular”.

Sobre a forma como agia em relação aos estudos em andamento em Manguinhos, Ezequiel Dias destaca sua capacidade de “ministrar o ensino sem a solemnidade da prelecção, mas em poucas palavras, sob o incisivo dos factos e o irrefragavel dos argumentos”. Carlos Chagas o define como o melhor dos amigos e o melhor dos mestres, dotado de um “carinho incomparável” e uma “sabedoria sem artificios”.

Segundo a narrativa de Ezequiel Dias, tinha “educação apuradissima”, “de verdadeiro gentleman”. Foi tímido na infância. O neto Eduardo Oswaldo Cruz relata que “nunca foi um aluno brilhante”, era “modesto, calado, quieto no seu canto”. Falar em público era incômodo, a ponto de errar uma resposta trivial em uma prova oral durante a faculdade de medicina. Ao ser homenageado em um jantar ou cerimônia, costumava apenas agradecer o cumprimento, sem delongas. Em carta ao amigo Salles Guerra, enviada do México em dezembro de 1907, onde representava o Brasil na Convenção Sanitária, Oswaldo se queixa: “Já fui até obrigado a discursar!”. Tinha perfil “calado e observador”, como Ezequiel Dias resume, somado a grande poder de observação e alta capacidade de atenção. Na sala de estudos de sua residência, guardava a figura de um frade com o dedo indicador sobre a boca, em gesto de silêncio.

Henrique Aragão descreve que falava pouco e preferia ouvir, “mas sempre que tinha que manifestar sua opinião, fazia-o de modo correto, suave e preciso, de quem tinha segurança e meditação no assunto”. Não à toa, é de Voltaire, um dos autores favoritos de Oswaldo, a máxima: “o mais competente não discute, domina a sua ciência e cala-se”.

A literatura francesa, aliás, era uma paixão. Nas prateleiras, Voltaire – dono também da máxima “todo homem é culpado do bem que não fez” – dividia espaço com Anatole France, autor de frases como “duvidemos até mesmo da própria dúvida”, “mais vale compreender pouco do que compreender mal”, “a virtude está toda no esforço” e “uma besteira repetida por trinta e seis milhões de bocas não deixa de ser uma besteira”.

Outra paixão era a arquitetura. O neto relata que sua tia Liseta, filha que ainda moça acompanhou Oswaldo Cruz em viagem à Europa, contava que, andando de trem, de Paris para Berlim, o pai chegava a saltar no meio da viagem quando via algum prédio que lhe interessasse. Nos álbuns de fotografia, o interesse pela arquitetura fica evidente pelos numerosos registros que Oswaldo Cruz realizava de prédios, palácios e igrejas. Em carta a Salles Guerra, quando estava em Berlim, na Alemanha, para a Exposição Internacional de Higiene, da qual retornaria com a premiação, em 1907, comentou sobre a cidade quanto à “bela arquitetura, muita variada”.

As edificações de Manguinhos, em especial o Castelo, o palacete construído para moradia da família em Botafogo e o prédio mandado erguer para a sede da Diretoria Geral de Saúde Pública sintetizam esse gosto pelo tema, tendo o arquiteto Luiz de Moraes sido o responsável por essas realizações. Na época diretor geral de Saúde Pública, Oswaldo foi um dos jurados que escolheu, por concurso, as fachadas dos novos prédios a serem construídos na Avenida Central do Rio de Janeiro, na então capital do país, no contexto da reforma urbana. Ezequiel Dias relata que, perguntado uma vez sobre o motivo da escolha do estilo mourisco, que marca a arquitetura do castelo, respondeu simplesmente: “porque é o mais bonito”.

Era um “dos grandes psychologos praticos da sua época”, dotado de um “dom intuitivo”, como Ezequiel Dias descreve. Acompanhava em Manguinhos os perfis dos alunos e cada um dos que trabalhavam com ele era alvo de uma análise rigorosa, sem que se notasse: “dotado de excepcional espirito de tolerancia perfeitamente humano, pensava que no homem, creatura sempre imperfeita, era bastante que as qualidades más fossem superadas pelas bôas”, Ezequiel sintetiza. A virtude de “restaurar caracteres” era um traço importante, que ilustra citando o caso de um funcionário de Manguinhos, “do tipo turbulento e perigoso”, que Oswaldo Cruz trouxe para perto de si, designando atividades de confiança. Ezequiel Dias relata que Oswaldo Cruz costumava ser um bom juiz. Afirma que Oswaldo era “um mixto singular de contemplativo e homem de acção, de artista e sábio, de poeta e luctador, emfim, um complexo de energias e sentimentalismo”.

Manteve as atividades do pai no atendimento médico junto a funcionários da fábrica de fiação e tecidos Corcovado mesmo no auge da dupla função em Manguinhos e na Diretoria Geral de Saúde Pública. Fundou uma creche e por vezes vacinava pessoalmente as crianças atendidas. Tinha especial desenvoltura com crianças: Ezequiel descreve que “ninguém como ele sabia entreter um recém nascido ou conversar com os pirralhos de 3 annos para cima, contando-lhes historia, que as sabia adequadas á idade de cada um”.

A espiritualidade é outro aspecto descrito por Ezequiel Dias, relatando que “era profundamente religioso; mas tinha uma religião sem ritos, entretecida apenas no íntimo do coração.” Nas cartas ao filho Bento, vemos referências como a seguinte, de janeiro de 1915: “que o bom Deus te conceda a felicidade completa”. Ou, em carta de abril de 1911 para a esposa, diz: “é preciso, como sempre, confiar no bom Deus”. E no telegrama emitido após receber, durante viagem ao México, a notícia do parto da esposa, conta: “corri para a igreja mais próxima para agradecer a Deus a graça que me concedeu”.

Em cartas, vemos Oswaldo referindo-se ao “querido Brasil”. O patriotismo é um traço destacado por Clementino Fraga, que, na Diretoria Geral de Saúde Pública, trabalhou sob direção de Oswaldo Cruz nas campanhas contra a febre amarela. Para Fraga, foi o amor à pátria que o fez administrador, assumindo a diretoria, e que o manteve no cargo ao longo das campanhas de enfrentamento da varíola, peste bubônica e febre amarela, “pelejando contra a fúria licenciosa de seus detratores”. Conhecia os principais episódios históricos do país, em especial a guerra do Paraguai, onde seu pai havia atuado como médico. Henrique Aragão também destaca que tinha “acendrado amor à sua Pátria e jamais deixara de reconhecer e exaltar a capacidade dos brasileiros no terreno das pesquisas científicas”, assim como Ezequiel Dias destaca que, em Oswaldo Cruz, “o patriotismo se revestia do aspecto de uma outra religião”. Em conversas, quando se falava de forma pessimista sobre o país “emergia do habitual silencio para defender sua terra”, relata. Visitou todos os estados, exceto Goiás. No gabinete da diretoria em Manguinhos, tinha mapas, livros de viagem e outros itens que refletiam o interesse pelo país. Em sua residência, também podiam ser encontrados esqueletos de animais curiosos, um arco e flecha e outros objetos representativos do Brasil. Depois de se tornar membro da Academia Brasileira de Letras, em 1913, tomava nota de contribuições para um dicionário de brasileirismos.

Abria espaço para o êxito daqueles que o acompanhavam nas empreitadas científicas. Carlos Chagas diz que “as melhores emoções de sua vida eram aquellas que lhe traziam os sucessos scientificos de sua escola. Mais lhe davam, em alegria, as conquistas de seus discipulos que as proprias e nunca duvidou levar fama ao nome dos trabalhadores de Manguinhos, diminuisse embora a propria fama”. “Pensava menos em si do que na gloria dos seus filhos intellectuaes”, afirma Ezequiel Dias, enquanto Aragão fala de uma “renúncia à sua maior glória pessoal”. Uma expressão desta conduta, envolvendo o próprio Ezequiel, pode ser notada no documento em que informa a conclusão do primeiro lote do soro para tratamento da peste bubônica, em fevereiro de 1901, no qual destaca a “tenacidade no trabalho, bôa vontade e inexcedível zêlo” dos auxiliares. Os discípulos foram uma “segunda familia”, como Carlos Chagas resume. Outra demonstração foi chamar como “método de Manguinhos” a inovação que elaborou sobre a técnica de preparo da vacina para peste bubônica, abrindo mão de conferir seu próprio nome.

O emblema que Oswaldo Cruz adotava para sua papelaria de correspondência remete à multiplicidade de sua personalidade: o circuito circular das palavras querer-saber-esperar-poder, que envolve as letras do seu nome, permite ser lido de diversas formas. Henrique Aragão conta que, quando questionado sobre as quatro palavras, “sempre se recusava a dar esclarecimentos a respeito, dizendo que melhor seria que cada qual lhe desse a significação que julgasse mais adequada e, mudava de assunto”. O mesmo quarteto está no esboço do sepulcro, que produz de próprio punho, em Berlim, em 1907, ao viver as manifestações da doença que o vitimaria uma década mais tarde.

Salles Guerra disse que “nos grandes actos de Oswaldo Cruz, houvia sempre um traço forte de nobreza, de dignidade e de coragem”. Ele conta que se atinha à máxima "tue recht und scheue niemand", antigo provérbio alemão traduzido por Salles Guerra como “faze o que deves aconteça o que acontecer”, mas que também pode ser traduzido como "agir de forma correta sem temer a ninguém". No Livro da Verdade, como chamava o caderno de controle financeiro e de anotações diversas que manteve nos anos de recém-casado, a contracapa traz em francês a anotação que sintetiza muito da sua visão da vida: “nós colhemos aquilo que plantamos”.

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