Para não perder
o futuro, artigo de Washington Novaes
É
muito preocupante que se esteja expandindo em parte do mundo empresarial,
da comunicação e até mesmo em setores do governo
federal a visão de que a chamada questão ambiental,
assim como a demarcação de terras indígenas,
constituem hoje obstáculos ao desenvolvimento econômico
e à geração de empregos no país.
Para essa visão têm contribuído
até visões apressadas do presidente da República,
que, segundo os jornais, reclama com freqüência da 'lentidão'
do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente. E para agravar
o quadro se esboça um conflito entre as áreas federal
e dos estados, nessa matéria.
Além da demarcação de
terras indígenas - um direito a eles assegurado pela Constituição
em vigor, e que é preciso respeitar, além de ser caminho
muito eficiente para a conservação de áreas
relevantes para a biodiversidade -, a questão centra-se principalmente
no licenciamento de hidrelétricas, gasodutos, pavimentação
de rodovias e autorizações para desmatamento de áreas,
de modo a permitir o avanço da fronteira agropecuária,
principalmente na Amazônia e em áreas de transição
para o cerrado.
O próprio ministro do Desenvolvimento,
Indústria e Comércio Exterior tem afirmado (Estado,
17/3) que as 'rígidas posições' do Ministério
do Meio Ambiente são 'uma pedra no sapato' em quase todas
as discussões.
É curioso que um ministério
tão desprovido de recursos como o do Meio Ambiente seja apontado
como tão poderoso. Ele continua a ter - como no governo anterior
- menos de 1% das dotações orçamentárias.
De 2003 para 2004, viu-as crescer apenas 9% (contra 27,8% na Agricultura
ou 50% no Planejamento).
No último corte nelas promovido, perdeu
15% (R$ 71,8 milhões) do pouco que tinha. O Ibama, órgão
apontado como emperrador por excelência nos processos de licenciamento,
até poucas semanas atrás só dispunha de sete
servidores em seu quadro técnico e tinha de recorrer a consultores
externos (agora tem 70 e vai fazer concurso para 150 analistas).
Das multas que aplicou entre 1995 e 2004 só recebeu efetivamente
2%, ou R$ 62 milhões de R$ 2,9 bilhões.
Pois é com essa estrutura que cabe
ao Ibama e ao ministério examinar complexos projetos nas
áreas mencionadas. E licenciá-los ou não. Sabendo,
como sabem os que já transitaram por essa área, que
os chamados estudos de impacto ambiental quase invariavelmente só
são feitos pelos empreendedores - quando são - depois
de concebidos os projetos técnicos, freqüentemente sem
nenhuma preocupação com os impactos sociais e ambientais.
Por isso, também quase invariavelmente
incluem apenas algumas 'medidas mitigadoras' que em nada ou quase
nada alteram a questão.
É preciso olhar esse quadro com outros
olhos. Ainda na semana passada, dirigindo-se a mais de 80 ministros
do Meio Ambiente, o secretário-geral da ONU, Kofi Annan,
afirmou que conflitos como o do Iraque têm impedido o mundo
de enxergar com clareza as maiores e mais reais ameaças que
pesam sobre a humanidade: mudanças climáticas e insustentabilidade
dos atuais padrões de produção e consumo no
mundo, além da capacidade de suporte e reposição
do planeta.
Poucas semanas antes, numa conferência
em Nova York, o mais respeitado dos estudiosos da biodiversidade
- Edward Wilson, professor em Harvard - lembrara que, 'num mundo
cada vez mais interdependente, o futuro do Brasil, que tem o maior
número de espécies vivas do planeta, é crítico
para todo o mundo'.
Se é assim, cabe perguntar: e a que
serve fundamentalmente grande parte dos projetos que têm encontrado
dificuldade de licenciamento ambiental?
Os projetos de megahidrelétricas na
Amazônia não servem essencialmente à expansão
da exportação de eletrointensivos destinados aos países
industrializados que não querem produzi-los por causa de
seus altíssimos custos ambientais, sociais e energéticos?
Eles não custaram ao Tesouro Nacional
subsídios da ordem de US$ 2 bilhões nas duas últimas
décadas, recursos que foram obtidos sobrecarregando a conta
dos consumidores residenciais? E não se vai ampliar esse
modelo?
Rodovias, hidrovias e ampliação
do desmatamento principalmente na Amazônia não servem
ao mesmo modelo que coloca ênfase na exportação
de commodities, principalmente soja e carne - enfrentando perdas
de valor real nas séries históricas e concorrendo
com os altíssimos subsídios que ajudam os países
industrializados a controlar da forma que lhes convém os
preços no mercado internacional?
Não se trata ainda de um modelo com
altos custos ambientais e sociais não contabilizados - perda
da biodiversidade, alto nível de erosão (e custos
para reposição da fertilidade por insumos químicos),
degradação das bacias hidrográficas pelo carreamento
desses sedimentos e deslocamento de dezenas de milhões de
pessoas para as zonas urbanas (cerca de 40 milhões em 40
anos; em uma década a perda líquida de postos de trabalho
nas áreas do agribusiness foi de 3 milhões), contribuindo
para a degradação urbana e o processo acelerado de
perda da governabilidade das metrópoles?
É nesse modelo que se pretende permanecer
e ainda aprofundar? Contribuindo para agravar a insustentabilidade
dos padrões mundiais a que referiu Kofi Annan?
Esquecendo que o Brasil - por sua dimensão
territorial, sua disponibilidade de recursos hídricos, a
maior diversidade biológica do planeta, potencial para matriz
energética absolutamente limpa - é provavelmente o
país com maior possibilidade de avançar em direção
a um modelo alternativo, adequado e muito mais remunerador no seu
comércio, se tiver uma nova estratégia que leve em
consideração essas questões?
É preciso dar força às
tentativas do Ministério do Meio Ambiente de discutir esses
problemas com as áreas de governo que têm interface
com as questões e com os setores empresariais envolvidos.
Da mesma forma, é preciso que ele
desarme com urgência os conflitos que levaram os órgãos
estaduais de meio ambiente a manifestar, na Carta de Fernando de
Noronha (6/3), seu 'profundo desapontamento' com vários procedimentos
do ministério, que julgam centralizadores e descabidos, além
da perda de força do Conselho Nacional do Meio Ambiente.
Em hora tão aguda, tal confronto é indesejável
e perigoso.
São mais que justas as preocupações
com o desenvolvimento econômico e a geração
de empregos. Mas o caminho não está na perda do futuro.
(Washington Novaes é jornalista - wlrnovaes@uol.com.br -,
7/5)
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