A
revolução estancada, artigo de Cristovam Buarque
Falta
ao núcleo do poder petista inspirar um novo projeto para
o país. Combinar o pragmatismo do equilíbrio financeiro
no curto prazo com a ideologia histórica do longo prazo.
‘Desestancar’ a revolução
Cristovam
Buarque, doutor em economia, é senador pelo PT/DF. Foi reitor
da UnB (1985-89), governador do Distrito Federal (1995-98) e ministro
da Educação (2003-04). Artigo publicado na ‘Folha
de SP’;
A eleição
do presidente Lula foi o maior passo em direção à
revolução social brasileira desde a abolição
da escravatura e a Proclamação da República.
Mas, cumprido um terço do seu mandato, ainda não houve
nenhum gesto para reorientar a estrutura social e o rumo do país.
O Brasil
continua com sua perspectiva de revolução estancada.
E a razão está nas características do PT e
na mentalidade do presidente e de seus auxiliares.
O PT
nasceu no setor mais moderno do sindicalismo -a indústria
automobilística e os servidores públicos-, que cresceu
sem revolução, graças à concentração
da renda, ao endividamento e ao desvio de recursos públicos
da área social para a infra-estrutura.
Dedicou-se
a canalizar as reivindicações desses trabalhadores,
aliando-se a grupos da esquerda tradicional e a setores populares.
Mas não trouxe uma nova utopia para o Brasil. Daí
a expressão ‘petismo’ nunca ter se afirmado.
O PT
chegou ao poder como um partido de reivindicações,
sem um projeto claro e aglutinador para construir o Brasil do futuro,
como se o futuro fosse apenas pleno emprego e melhores salários.
Por
isso, o governo Lula tem se concentrado na estabilidade monetária
e na política comercial externa, esperando um ‘espetáculo
do crescimento’ que traria um Brasil sem pobreza nem desigualdade,
com justiça social, moderno, soberano.
Não
há menção sistemática a um projeto alternativo,
a uma utopia possível para a nação. Como se
a esquerda sonhadora, irresponsável e utópica do passado,
tivesse ficado pragmática, responsável e prisioneira
do curto prazo.
Prova
surpreendente da falta de espírito transformador é
a ausência de vocabulário novo, característica
de países em mutação, com bandeiras e propostas
novas. Nesses 17 meses, não vimos surgir vocabulário
novo no Brasil.
Fome
Zero é apenas uma meta, importada de programas antigos, como
os dos EUA e das Nações Unidas para países
pobres. O Bolsa-Família é um programa que inova na
administração, unificando programas criados pelo governo
passado, mas que retrocede em termos de transformação
social ao deixar, na prática, de condicionar a transferência
de renda à freqüência escolar.
O governo
argumenta que sua paralisia decorre da herança maldita recebida.
Na verdade, há uma causa ideológica profunda para
essa paralisia: a mentalidade, nascida e testada nas lides sindicais,
que se limita às reivindicações do dia-a-dia.
Nossos dirigentes têm mentalidade, não têm ideologia.
A esquerda
nascida no ABC chegou à Presidência com um projeto
de poder, mas sem projeto para utilizá-lo. Comprometido com
os trabalhadores da indústria automobilística, o PT
faz parte de uma esquerda que trabalha com o aumento da demanda,
e não com o fim das necessidades.
Em
países pobres, a criação de demanda exige concentração
de renda e desvio de recursos públicos para a infra-estrutura.
Os programas sociais são complementares e, como em regimes
de direita, assistenciais. Não vêm abolir as necessidades
nem transformar a realidade.
O governo
parece perplexo e percebe que, no mundo global, o setor público
não influi na dinâmica da economia e não pode
atender às necessidades dos empregados e desempregados da
indústria. Com recursos limitados, não pode atender
às reivindicações dos trabalhadores do setor
estatal. Aos pobres sobram apenas programas assistenciais.
Falta
ao núcleo do poder petista inspirar um novo projeto para
o país. Combinar o pragmatismo do equilíbrio financeiro
no curto prazo com a ideologia histórica do longo prazo.
‘Desestancar’ a revolução.
Nunca
foi tão necessário e possível mudar o Brasil,
com uma revolução democrática, responsável,
que combinasse crescimento econômico com equilíbrio
ecológico e realizasse um choque social.
Para
isso o presidente Lula foi eleito -para desestancar a revolução,
investir na educação e no crescimento econômico
de um novo tipo, que atenda também às necessidades
das massas, e não apenas à demanda dos consumidores,
que respeite o meio ambiente, que não traga o endividamento
do futuro.
Isso
é possível, os recursos existem. Falta apenas vigor
transformador. Para levar o plano adiante, o presidente Lula e seu
governo precisam ser despertados e pressionados. E o instrumento
é o PT. Apesar de seu nascimento reivindicatório,
e não revolucionário, nenhum outro partido está
mais perto de oferecer a energia política progressista de
que o Brasil precisa.
O caminho
está em não calar. Não confundir o partido,
comprometido com a história, com o governo prisioneiro da
administração. O silêncio em troca da camaradagem
é uma traição histórica.
No
seu lugar, é preciso instalar uma lealdade crítica,
mobilizar a base da nação petista para que ela desperte
a cúpula do ‘Estado’ petista. Caso isso não
aconteça, só nos restará torcer para que outros
partidos, talvez até os conservadores, entendam a necessidade
de redirecionar a história do Brasil, desestancar sua revolução.
Não apenas administrá-lo, mudá-lo.
(Folha de SP, 15/6)
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