O jogo de amarelinha: o governo, os números da economia e a opinião pública

Mudar para ficar tudo igual

23.09.2004 | Parece que não vai dar em nada essa história de superávit fiscal contracíclico, que circulou alegremente no day after da alta na taxa básica de juros, como alternativa a futuras elevações nos juros. Superávit contracíclico é a expressão do economês para a idéia de que o aperto fiscal pode ser maior quando a economia cresce e, em compensação, deveria ser menor quando a atividade econômica como um todo recuasse. Um conceito velho de guerra, desprezado pelos neoliberais de casaca, que voltou a colocar o nariz de fora depois da quebra e do calote da Argentina – que, em parte, foi a nocaute pela imposição, FMI à frente, de superávits fiscais a qualquer custo.

Lançada entre nós ainda no ano passado pelo ministro do Planejamento, Guido Mantega, a proposta de adoção dos superávits contracíclicos foi fulminada sem dó nem piedade pelos famosos analistas de mercado e congelada por seus semelhantes no governo e nos organismos multilaterais, FMI à frente. Agora relançada pelo ministro da Fazenda, Antonio Palocci, ganhou elogios generalizados dos mesmos que a bombardearam antes.

Para encontrar a diferença entre as pedras de ontem e as flores de hoje não é necessário recorrer a raciocínios sofisticados. Simplesmente, há um ano e pouco, a confiança na "responsabilidade" fiscal do governo Lula era ainda quase nenhuma, assim como era quase nenhuma a credibilidade de Mantega junto ao mundo financeiro. Hoje, o governo não precisa mais convencer ninguém de que reza pela cartilha ortodoxa e de que Palocci é "um dos nossos" desde criancinha.

Uma semana depois de relançada, no entanto, a idéia do superávit contracíclico voltou a ficar sem pai nem mãe. Primeiro com o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, e depois com o próprio Palocci, ela foi desidratada até restar apenas a formalização do que, na prática, já ocorreria: um aumento do superávit fiscal no ano de 2004 em relação à meta de 4,25% do PIB. Vai daí que, a se confirmar que o negócio é só para este ano, o contraciclo da coisa se limitará a aproveitar um raro momento de crescimento econômico para reservar mais dinheiro ao pagamento dos juros.

No fundo, talvez seja melhor não levar a idéia mais longe. Primeiro porque a ciência econômica (e quem sabe também a Física) ganharia mais uma inefável contribuição brasileira ao seu cabedal de conhecimento, na figura de um movimento contracíclico sem ciclos. E, depois, o negócio não estava mesmo cheirando muito bem. Afinal, se a idéia de superávits contracíclicos não é nova, nem brasileira, os brasileiros seriam os primeiros a inventar superávits contracíclicos na fase de alta do ciclo. Fica uma pulga atrás da orelha se, na hora H da ocorrência de um recuo na economia – e, em conseqüência, de alívio nas contas públicas, segundo as regras do superávit contracíclico –, não se resolvesse revogar a norma.

Aumentar o superávit em lugar de elevar juros é uma alternativa para mexer na política econômica sem mudar nada. Trocar um aperto monetário por um aperto fiscal não significa sair do aperto. Nem significa abrir caminho para a solução da armadilha em que nos metemos, ao adotar um regime de metas de inflação como o desenhado no Brasil. Para não ir muito longe, por conta da indexação ainda vigente em preços importantes, como os das tarifas de serviços públicos, temos um sistema de controle de inflação de primeiro mundo, com indexações de preços de terceiro.

Combinados com desvalorizações cambiais mais agudas, capazes de reduzir a vulnerabilidade externa, com a acumulação de reservas internacionais robustas, superávits fiscais mais duros, em economias altamente endividadas como a brasileira, fazem sentido. Mas como acentuar as desvalorizações, numa economia indexada, sem riscos realmente sérios de deflagrar surtos inflacionários? Eis o nó para o qual ainda não surgiram respostas convincentes.

Por essas e outras é que, em razão das indexações e dos gargalos de infra-estrutura, a meta de inflação de 4,5% definida pelo governo para 2005 deve ser entendida, por excessivamente ambiciosa, como desastrada. A moral da história é que as tentativas convencionais de atendê-la custarão muito caro ao país.

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A propósito do re-relançamento da idéia dos fundos internacionais de combate à fome e à pobreza, com a qual o presidente Lula volta e meia ganha um espaço nos holofotes da alta política global, não custa lembrar que o buraco é muito mais embaixo. O mundo, inclusive com a participação ativa do Brasil, está produzindo mais alimentos do que nunca, mas o número de seres humanos com fome voltou a aumentar.

Organismos da ONU dedicados ao tema informam que são produzidos alimentos em quantidade suficiente para assegurar 2.800 calorias diárias a cada habitante do planeta. É a quantidade que, de acordo com as diretrizes nutricionais americanas, supre as necessidades de homens ativos e ultrapassa as 2.100 calorias diárias estabelecidas, em 2000, nas Metas do Milênio (reduzir pela metade o número de pobres e de famintos até 2015). Só que 850 milhões de pessoas, das quais 300 milhões são crianças, ainda passam fome ou se alimentam de forma irregular.

Nas últimas três décadas e meia, a produção de alimentos cresceu mais rápido do que a população mundial. Isso fez cair o número de famintos, entre fins dos anos 60 e fins dos anos 90, de quase 1 bilhão de seres para menos de 800 milhões. Agora, o problema não é mais de produção, mas de acesso ao que está sendo produzido. Resumindo: é uma questão de emprego e renda.