Quase tão
bom quanto uma noite de sono

O sonho, tela de 1932 de Pablo Picasso
Você é daqueles que gostam de tirar uma sonequinha depois
do almoço, mas sempre sentiu uma pontinha de culpa por se permitir
esse prazer? Parabéns, a neurociência acaba de lhe arranjar
a desculpa perfeita: o que era considerado preguiça hoje é
uma maneira cientificamente comprovada -- e quase tão boa quanto
uma boa noite inteira de sono -- de ajudar o cérebro a aprender.
Principalmente se a sua soneca incluir uns bons 20 minutos de sonhos.
A novidade vem da equipe do neurocientista Robert Stickgold, da Universidade
Harvard (EUA). Em estudo publicado em julho de 2002 na revista Nature
Neuroscience, o grupo havia demonstrado que o treino repetido em uma tarefa
simples de identificação visual faz com que o desempenho
acabe deteriorando, ao invés de melhorar cada vez mais -- e o culpado
é o cérebro, que vai ficando cansado. Quem toca um instrumento
musical deve conhecer o problema: treino demais num dia só pode
ser frustrante, à medida que, com o excesso, os dedos parecem até
desaprender a lição.
No estudo de 2002, os pesquisadores davam a dica, por sinal já
conhecida de vários aspirantes a concertista: uma soneca rápida
de 30 minutos após o treino é suficiente para evitar que
o desempenho continue piorando com o exercício. E se a soneca for
de uma hora inteira, o desempenho na tarefa visual testada no estudo volta
a ser tão bom quanto antes do treino começar. Mas melhora,
mesmo, só no dia seguinte -- depois que os voluntários dormiam
uma noite inteira bem dormida. Sem uma noite de sono, nada de aprendizado.
O que uma noite de sono tem que a soneca não tem? Um novo estudo
do mesmo grupo mostra agora que a diferença entre a soneca fazer
o desempenho parar de piorar, voltar à estaca zero ou até
começar a melhorar pode ser uma questão de tempo de sono
-- e de sonhos.
Desta vez, os 45 voluntários puderam puxar um soninho de 60 ou
até 90 minutos após o treino na mesma tarefa visual usada
no estudo anterior: identificar a orientação de pequenas
barrinhas em um dos cantos da tela do computador. Como antes, 60 minutos
de sono não pareceram fazer mais do que restaurar o nível
inicial de desempenho. Mas 90 minutos foram suficientes para que o mesmo
tempo de treino já produzisse melhoras, antes mesmo de uma noite
inteira de sono.
A diferença, no entanto, não é uma simples questão
de 30 minutos adicionais de sono. Enquanto quase sempre se sonha durante
cochilos de 90 minutos, sonecas de uma hora podem incluir um período
de sonhos ou não. E aqui está a diferença: se o cochilo
após o treino inclui alguns minutos de sonhos, o desempenho na
tarefa treinada não só deixa de piorar a seguir como até
começa a melhorar -- e ainda no mesmo dia, antes de uma noite inteira
de sono.
Stickgold e seus colaboradores já supunham que os efeitos benéficos
do sono noturno para o aprendizado vêm da alternância de ciclos
de sono com e sem sonhos ao longo da noite. Sua nova descoberta, relatada
na Nature Neuroscience de junho de 2003, confirma a importância
da combinação dessas duas fases do sono. Talvez o sono sem
sonhos sirva como um 'restaurador' do funcionamento do cérebro,
pré-requisito para que na fase seguinte, com sonhos, ocorram as
modificações necessárias para que o aprendizado se
instale.
Mas um cochilo recheado de sonhos pode ser ainda mais interessante. No
novo estudo, quem chegou a sonhar durante o cochilo e ainda dormiu à
noite teve no dia seguinte um desempenho ainda melhor do que os voluntários
que tiveram direito a uma noite normal de sono após o treino, sem
cochilos. Isso indica que os benefícios de sonecas diurnas e sonos
noturnos são aditivos. Na verdade, na interpretação
dos autores, uma soneca à tarde seguida de uma noite de sono pode
ser tão benéfica ao aprendizado quanto duas noites seguidas
de sono.
E tem mais: quem chegou a sonhar durante o cochilo ficou com o desempenho
tão bom já no mesmo dia quanto quem não tirou uma
soneca mas depois dormiu uma noite inteira, até ser testado no
dia seguinte. A tentação, é claro, é dizer
que um cochilo de 90 minutos, desde que seja entremeado de sonhos, é
tão bom quanto uma noite inteira de sono.
Em matéria de aprendizado, pode até ser. Mas em matéria
de descanso ou de conforto... eu não troco uma noite inteira na
minha caminha, com o meu travesseirinho, por cochilo nenhum!
Fontes:Mednick
S, Nakayama K, Stickgold R (2003). Sleep-dependent learning: a nap is
as good as a night. Nature Neuroscience 6, 697 - 698.Mednick SC, Nakayama
K, Cantero JL, Atienza M, Levin AA, Pathak N, Stickgold R (2002). The
restorative effect of naps on perceptual deterioration. Nature Neuroscience
5, 677-681.
Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia
27/06/03
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