Publicação do Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz - Ano XIII - n0 03- 15/03/2007

 

Debate sobre neurociências inaugurou ano letivo do IOC

Neuroética ou A Ousadia de Prometeu Retomada foi o tema da palestra do professor Roberto Lent no último dia 13 de março, em evento que marcou a abertura do ano letivo no Instituto Oswaldo Cruz e a retomada do Centro de Estudos. Lent foi empossado no dia 26 de fevereiro como diretor do Instituto de Ciências Biológicas da UFRJ - clique aqui para ler o discurso de posse. Durante a palestra, Lent mostrou humor e vontade de transformar cada vez mais a ciência no Brasil. “A minha definição de velho é alguém que tem 10 anos mais do que eu. E vai andando”, brincou.

Gutemberg Brito
Roberto Lent usou o personagem Frankenstein para abrir uma perspectiva histórica acerca das novas neurotecnologias

Lent afirmou na palestra que a neuroética é um tema pouco explorado. “As novas neurotecnologias interferem na mente humana e são mal regulamentadas”, comenta. Ele lembrou que desde o século XIX a recriação da vida é tema de preocupações filosóficas, com é o caso do conto Frankenstein. O romance relata a história de Victor Frankenstein, um estudante de ciências naturais que constrói um monstro em seu laboratório. Mary Shelley escreveu a história quando tinha apenas 19 anos, entre 1816 e 1817, e a obra foi primeiramente publicada em 1818 a partir da experiência de Shelley com o Lord Byron em Genebra. “É a idéia de recriar corpos humanos vivos”, afirma Lent.

No original em inglês, o romance leva o nome de O Moderno Prometeu, também lembrado por Lent. Na mitologia grega, este titã grego roubou o fogo divino de Zeus para dá-lo aos homens, que assim puderam evoluir e distinguirem-se dos outros animais. Como castigo, Zeus o acorrentou a um rochedo no monte Cáucaso, onde todos os dias um abutre comia-lhe o fígado, escolhido por Zeus por ser um fígado com capacidade de se regenerar. Deste modo, a duração da punição deveria ser de 30 mil anos. Segundo Lent, a criação dos homens é central para este mito.

Psicocirurgia e ética

Continuando o percurso pela história das neurociências, Lent destaca que, a partir do século XX, reforçou-se a idéia de intervenção, então, no cérebro humano, de modo a controlar a mente. Um notável médico neurologista e escritor português, Egas Moniz, contribuiu decisivamente para o desenvolvimento da medicina ao conseguir pela primeira vez dar visibilidade às artérias do cérebro. A angiografia cerebral – técnica utilizada para a detecção de anomalias dos vasos sanguíneos cerebrais –, tornou possível localizar neoplasias, aneurismas, hemorragias e outras mal-formações no cérebro humano e abriu novos caminhos para a cirurgia cerebral. A psicocirurgia de Moniz, Lent argumenta, era feita ainda de maneira primitiva e contava com um contexto favorável da ascensão do nazismo na Europa.

Atualmente, o pesquisador acrescenta, já se sabe, por exemplo, que áreas do córtex frontal são responsáveis por elementos ligados à moral. A atividade da rede neuronal é percebida quando pacientes são confrontados com frases neutras – como por exemplo a frase “Esta sala é neutra”, em que a atividade neuronal não é percebida no córtex frontal – e frases socialmente carregadas – como a frase “Indígenas são seres inferiores”, em que a atividade neuronal é, ao contrário, amplamente percebida.

A partir deste desenvolvimento, o palestrante provoca a platéia: “Se é factível intervir no cérebro, será ético?” Ele aponta diferenças entre técnicas mais danosas, como a cirurgia; mais ou menos danosas, como as substâncias psicoativas legais e ilegais; e a psicoterapia, menos danosa. “Estamos mais uma vez diante de um novo dilema: quem seria elegível para uma intervenção no cérebro?”, questiona. “No que diz respeito às doenças neurodegenerativas, como a doença de Huntington, a doença de Parkinson ou a doença de Alzheimer, há poucas dúvidas sobre a importância da utilização deste recurso. Em compensação, no que diz respeito às doenças psiquiátricas, temos muitas questões por discutir”, completa.

Questões em discussão

Lent argumenta que o debate sobre a intervenção cerebral é uma questão central e que demanda mais discussão, assim como se discute a bioética atualmente. “Nos processos de intervenção na memória, o que ocorre é um fortalecimento das sinapses. Já existe no mercado uma pílula da memória”, lembra. O dilema, argumenta, passa a ser quem terá direito à pílula. “São decisões fáceis conceder a pacientes com Alzheimer ou idosos e mais difíceis conceder a estudantes, trabalhadores ou qualquer um que ache um motivo razoável”, pondera. Já se sabe que os comandos motores são danificados por lesões cerebrais. O desenvolvimento dos registros multineuronais, que identificam muitos neurônios simultaneamente, levará a avanços científicos muito em breve, segundo o professor.

“Registro de movimentos estimulados em um chimpanzé pode fazer com que ele pense neste movimento. Após registrado e transferido para o computador, é possível gerar sinais neuronais de intenção de movimento”, diz. Segundo Lent, é possível criar um algoritmo para prever os movimentos. A previsão é mais precisa de acordo com a precisão do registro neuronal. Tecnologias para inserir dispositivos de registro no cérebro humano já estão disponíveis e são capazes de predizer o comportamento de um indivíduo. “Posso recolher intenções neuronais ou, se preferirmos chamar assim, pensamentos, e usar esse potencial para movimentar uma cadeira de rodas”, acrescenta. Neste caso, quais decisões são fáceis de serem tomadas? “É o caso de traumatizados medulares. As decisões ficam mais difíceis quando os usuários forem atletas, artistas, trabalhadores”.

O aprimoramento do ser humano – e não apenas o tratamento – é eticamente questionável, mas Lent pondera: “Menopausa, feiúra, altura e gravidez não são doenças, mas há intervenção humana”, diz. Diante desta tendência de robotizar os seres humanos, o pesquisador aponta áreas como a neurofarmacologia – pílulas da memória, drogas psicoativas, reguladores do sono e reguladores dos ritmos ultradianos –, a neuroimagem – detectores de mentiras, psicocirurgia funcional e diagnóstico psicológico – e o conceito adotado por Lent, a neurorrobótica – controle motor artificial, controle cerebral de máquinas, cirurgia telecontrolada e controle volitivo artificial. “Nos transformamos em frankesteins e prometeus modernos. Não é mais a recriação da vida que está sendo proposta na nossa sociedade, mas da mente humana. A ética está muito atrás do ‘cavalo' da ciência, precisamos alcança-la”, conclui.

Pai de Lent fez história no IOC

A relação de Roberto com o Instituto Oswaldo Cruz tem história. “Eu freqüentava o campus quando tinha 5 ou 6 anos de idade, por causa do meu pai [Herman Lent, falecido em junho de 2004]”, conta. Data de 1934 o primeiro trabalho de Herman publicado nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz intitulado Sobre dois novos gêneros da subfamília Trichostrongylinae Leiper, 1908 parasitos de Tinamus solitarius Vieill. Herman trabalhou ininterruptamente por 49 anos no IOC, só se afastando quando no dia 1º de abril de 1970, por perseguições do então ministro da Saúde, Francisco de Paula Rocha Lagoa, durante a ditadura militar. Teve seus direitos políticos cassados, junto a outros nove pesquisadores – Haity Moussatché, Moacyr Vaz de Andrade, Augusto Cid de Mello Perissé, Hugo de Souza Lopes, Sebastião Jose de Oliveira, Fernando Braga Ubatuba, Tito Arcoverde Cavalcanti. Foi fundador das Sociedades Brasileiras de Zoologia e de Microbiologia e da SBPC. Foi membro da Sociedade Americana de Parasitologistas, das sociedades chilenas de História Natural e de Entomologia e da Academia de Zoologia de Agra, na Índia. Doou sua biblioteca particular com mais de 18 mil separatas nas áreas de Zoologia, Entomologia, Helmintologia, Protozoologia para a Biblioteca de Manguinhos.

Gustavo Barreto



IOC - Ciência para a Saúde da População Brasileira