Receber o diagnóstico de uma enfermidade como a doença de Chagas pode causar mudanças na rotina, nos planos e, por que não, uma tristeza e apatia nos anos que se seguem? Transtorno recorrente entre pacientes crônicos, até este momento a depressão era explicada na literatura médica como um fator psicológico. A incerteza do destino e o elevado percentual de incurabilidade, agravados pelo baixo nível socioeconômico predominante entre os portadores, estariam associados à mudança de comportamento registrada nestes grupos.
No Laboratório de Biologia das Interações do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), a equipe liderada pela pesquisadora Joseli Lannes identificou que o próprio patógeno causador da doença de Chagas – o protozoário Trypanosoma cruzi - pode desencadear uma desordem imunológica e neuroquímica associada ao quadro depressivo entre os pacientes. O estudo, cuja autora principal é Glaucia Vilar Pereira, foi publicado na revista científica de referência ‘Brain, Behavior and Immunity’ e sugere um tratamento combinado a base de drogas já disponíveis no mercado: benzonidazol e pentoxifilina.
A ideia que deu origem à pesquisa surgiu quando Joseli realizava experimentos sobre danos cardíacos com camundongos: ao longo do estudo, ela notou que alguns dos animais eram mais apáticos. Com base nesta observação inicial, a pesquisadora decidiu conduzir testes comportamentais para identificar se estava diante de quadros de depressão ou do chamado sickness behavior, traduzido ao pé da letra como “comportamento de doença”. Devido à produção de citocinas inflamatórias que agem no sistema nervoso, este fenômeno causa sintomas parecidos com o do transtorno depressivo descrito em pacientes.
Glaucia identificou sintomas de depressão nos ratos infectados submetidos a testes de esforço. Foto: Isabela Resende/LBI“Uma marca inconfundível da depressão é a desistência do paciente — neste caso, do animal. Para identificar o que estava acontecendo, utilizamos dois grupos de camundongos. Cada grupo foi infectado com cepas tipo I e tipo II de T. cruzi. Constatamos que só o primeiro grupo apresentava imobilidade e desistência quando submetido a testes. Era um sinal preliminar de que a depressão, na doença de Chagas, poderia não ser um processo psicossomático. Afinal, o animal não tem consciência da doença ou de sua condição social”, assinala Joseli. Os dados indicariam, enfim, que o processo não é associado ao sickness behavior, mas, de fato, à depressão.
A cepa tipo I é encontrada em todo o Brasil, com maior incidência nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste. Estima-se que existam dois milhões de portadores da doença de Chagas no país.
Em busca dos biomarcadores que justificassem o comportamento apático dos camundongos, a equipe identificou que os níveis da enzima IDO, que compromete a síntese de serotonina - o neurotransmissor associado à satisfação e à felicidade - estavam acima do normal nos animais incluídos no experimento. De acordo com Joseli, isso acontece porque a presença do parasito no organismo, ainda que reduzida na fase crônica da doença, induz à expressão da enzima IDO no sistema nervoso central. “Essa enzima degrada o triptofano, aminoácido substrato para a produção da serotonina, reduzindo, assim, os níveis deste neurotransmissor”, explica.
Parasitos da espécie Trypanosoma cruzi. Até então, eram conhecidos apenas os danos causados aos aparelhos cardíaco e digestivo dos pacientes com Chagas. Foto: Helene BarbosaO próximo passo foi tratar os camundongos com uma combinação de benzonidazol, quimioterápico utilizado contra o parasito, e fluoxetina, antidepressivo que aumenta a disponibilidade da serotonina no cérebro. Os resultados foram satisfatórios, mas a melhora significativa dos animais não convenceu a equipe. “Sabemos que 30% da população mundial não responde à fluoxetina, principalmente pacientes com câncer e doenças autoimunes. Isso ocorre porque nem toda depressão é causada apenas por desordens químicas envolvendo a serotonina. A resposta imunológica à doença também participa deste processo”, esclarece.
Os pesquisadores partiram, então, para a análise dos níveis de fator de necrose tumoral (TNF) nos camundongos. Trata-se de uma citocina produzida pelo sistema imunológico durante infecções por parasitas e na presença de tumores, associada a inflamações sistêmicas e alterações de comportamento, como a anorexia. Constatado que o nível de TNF era elevado nos animais, eles foram divididos em dois grupos e tratados ou com pentoxifilina, um imunomodulador que bloqueia a síntese de TNF, ou com anticorpo anti-TNF (bloqueador de atividade da citocina). A resposta foi positiva em ambos os casos. Assim, a equipe confirmou que o quadro depressivo, na doença de Chagas, é resultado de um complexo circuito imunológico que interfere de forma contundente no sistema nervoso central, tendo como agente deflagrador o próprio parasito Trypanosoma cruzi.
Glaucia (foto) e Joseli apostam em medicamentos que já estão no mercado para tratamento da depressão em Chagas. Foto: Isabela Resende/LBI“Muitas doenças inflamatórias crônicas, tais como artrite reumatoide, também são associadas à depressão e muitos pacientes não respondem a antidepressivos comuns. Nossos achados transcendem a doença de Chagas, pois acreditamos que a pentoxifilina possa ser usada de forma muito mais ampla, estendendo os benefícios a pacientes de diversos agravos”, explica Joseli.
Em breve, uma parceria entre o Laboratório de Biologia das Interações do IOC e o Ambulatório de Referência em Doença de Chagas, coordenado por Wilson Oliveira Junior e vinculado ao Pronto-Socorro Cardiológico Universitário de Pernambuco (Procape), da Universidade de Pernambuco (UPE), possibilitará a realização de uma pesquisa clínica para investigar o uso da terapia sugerida pela equipe liderada por Joseli. De acordo com a pesquisadora, o Ambulatório atende mais de duas mil pessoas diagnosticadas com Chagas, das quais 500 foram caracterizadas clinicamente no Procape e imunologicamente pela equipe do Laboratório do IOC. A proposta é realizar um estudo com a participação de psicólogos e cardiologistas, com duração prevista de dois anos, para só então testar as intervenções terapêuticas sugeridas pela equipe do IOC.
Para a especialista, se comprovada a eficácia do protocolo sugerido, a implementação do mesmo nas unidades de saúde poderá ocorrer sem demora, uma vez que o benzonidazol, a pentoxifilina e a fluoxetina já estão aprovadas pela ANVISA e no mercado. Por serem medicamentos já conhecidos e largamente utilizados, testes clínicos necessários no caso de desenvolvimento de novas substâncias ficam dispensados. “Este estudo é uma prova de que devemos olhar para o paciente como um todo e não atentar apenas à busca pela cura. A qualidade de vida e o bem-estar dos portadores de doença de Chagas são de extrema importância, principalmente no caso de uma doença negligenciada, que afeta pessoas pobres e expressa um quadro de depressão, que pode contribuir para mantê-las nesta condição de pobreza. É nossa missão lhes ajudar a ter perspectiva de vida”, finaliza.
Parceria.
O Laboratório de Biologia Molecular e Doenças Endêmicas do IOC colaborou no estudo, bem como pesquisadores do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Laboratório de Farmacologia da Neuroplasticidade e do Comportamento, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
*Reportagem: Isadora Marinho
Receber o diagnóstico de uma enfermidade como a doença de Chagas pode causar mudanças na rotina, nos planos e, por que não, uma tristeza e apatia nos anos que se seguem? Transtorno recorrente entre pacientes crônicos, até este momento a depressão era explicada na literatura médica como um fator psicológico. A incerteza do destino e o elevado percentual de incurabilidade, agravados pelo baixo nível socioeconômico predominante entre os portadores, estariam associados à mudança de comportamento registrada nestes grupos.
No Laboratório de Biologia das Interações do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), a equipe liderada pela pesquisadora Joseli Lannes identificou que o próprio patógeno causador da doença de Chagas – o protozoário Trypanosoma cruzi - pode desencadear uma desordem imunológica e neuroquímica associada ao quadro depressivo entre os pacientes. O estudo, cuja autora principal é Glaucia Vilar Pereira, foi publicado na revista científica de referência ‘Brain, Behavior and Immunity’ e sugere um tratamento combinado a base de drogas já disponíveis no mercado: benzonidazol e pentoxifilina.
A ideia que deu origem à pesquisa surgiu quando Joseli realizava experimentos sobre danos cardíacos com camundongos: ao longo do estudo, ela notou que alguns dos animais eram mais apáticos. Com base nesta observação inicial, a pesquisadora decidiu conduzir testes comportamentais para identificar se estava diante de quadros de depressão ou do chamado sickness behavior, traduzido ao pé da letra como “comportamento de doença”. Devido à produção de citocinas inflamatórias que agem no sistema nervoso, este fenômeno causa sintomas parecidos com o do transtorno depressivo descrito em pacientes.
Glaucia identificou sintomas de depressão nos ratos infectados submetidos a testes de esforço. Foto: Isabela Resende/LBI“Uma marca inconfundível da depressão é a desistência do paciente — neste caso, do animal. Para identificar o que estava acontecendo, utilizamos dois grupos de camundongos. Cada grupo foi infectado com cepas tipo I e tipo II de T. cruzi. Constatamos que só o primeiro grupo apresentava imobilidade e desistência quando submetido a testes. Era um sinal preliminar de que a depressão, na doença de Chagas, poderia não ser um processo psicossomático. Afinal, o animal não tem consciência da doença ou de sua condição social”, assinala Joseli. Os dados indicariam, enfim, que o processo não é associado ao sickness behavior, mas, de fato, à depressão.
A cepa tipo I é encontrada em todo o Brasil, com maior incidência nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste. Estima-se que existam dois milhões de portadores da doença de Chagas no país.
Em busca dos biomarcadores que justificassem o comportamento apático dos camundongos, a equipe identificou que os níveis da enzima IDO, que compromete a síntese de serotonina - o neurotransmissor associado à satisfação e à felicidade - estavam acima do normal nos animais incluídos no experimento. De acordo com Joseli, isso acontece porque a presença do parasito no organismo, ainda que reduzida na fase crônica da doença, induz à expressão da enzima IDO no sistema nervoso central. “Essa enzima degrada o triptofano, aminoácido substrato para a produção da serotonina, reduzindo, assim, os níveis deste neurotransmissor”, explica.
Parasitos da espécie Trypanosoma cruzi. Até então, eram conhecidos apenas os danos causados aos aparelhos cardíaco e digestivo dos pacientes com Chagas. Foto: Helene BarbosaO próximo passo foi tratar os camundongos com uma combinação de benzonidazol, quimioterápico utilizado contra o parasito, e fluoxetina, antidepressivo que aumenta a disponibilidade da serotonina no cérebro. Os resultados foram satisfatórios, mas a melhora significativa dos animais não convenceu a equipe. “Sabemos que 30% da população mundial não responde à fluoxetina, principalmente pacientes com câncer e doenças autoimunes. Isso ocorre porque nem toda depressão é causada apenas por desordens químicas envolvendo a serotonina. A resposta imunológica à doença também participa deste processo”, esclarece.
Os pesquisadores partiram, então, para a análise dos níveis de fator de necrose tumoral (TNF) nos camundongos. Trata-se de uma citocina produzida pelo sistema imunológico durante infecções por parasitas e na presença de tumores, associada a inflamações sistêmicas e alterações de comportamento, como a anorexia. Constatado que o nível de TNF era elevado nos animais, eles foram divididos em dois grupos e tratados ou com pentoxifilina, um imunomodulador que bloqueia a síntese de TNF, ou com anticorpo anti-TNF (bloqueador de atividade da citocina). A resposta foi positiva em ambos os casos. Assim, a equipe confirmou que o quadro depressivo, na doença de Chagas, é resultado de um complexo circuito imunológico que interfere de forma contundente no sistema nervoso central, tendo como agente deflagrador o próprio parasito Trypanosoma cruzi.
Glaucia (foto) e Joseli apostam em medicamentos que já estão no mercado para tratamento da depressão em Chagas. Foto: Isabela Resende/LBI“Muitas doenças inflamatórias crônicas, tais como artrite reumatoide, também são associadas à depressão e muitos pacientes não respondem a antidepressivos comuns. Nossos achados transcendem a doença de Chagas, pois acreditamos que a pentoxifilina possa ser usada de forma muito mais ampla, estendendo os benefícios a pacientes de diversos agravos”, explica Joseli.
Em breve, uma parceria entre o Laboratório de Biologia das Interações do IOC e o Ambulatório de Referência em Doença de Chagas, coordenado por Wilson Oliveira Junior e vinculado ao Pronto-Socorro Cardiológico Universitário de Pernambuco (Procape), da Universidade de Pernambuco (UPE), possibilitará a realização de uma pesquisa clínica para investigar o uso da terapia sugerida pela equipe liderada por Joseli. De acordo com a pesquisadora, o Ambulatório atende mais de duas mil pessoas diagnosticadas com Chagas, das quais 500 foram caracterizadas clinicamente no Procape e imunologicamente pela equipe do Laboratório do IOC. A proposta é realizar um estudo com a participação de psicólogos e cardiologistas, com duração prevista de dois anos, para só então testar as intervenções terapêuticas sugeridas pela equipe do IOC.
Para a especialista, se comprovada a eficácia do protocolo sugerido, a implementação do mesmo nas unidades de saúde poderá ocorrer sem demora, uma vez que o benzonidazol, a pentoxifilina e a fluoxetina já estão aprovadas pela ANVISA e no mercado. Por serem medicamentos já conhecidos e largamente utilizados, testes clínicos necessários no caso de desenvolvimento de novas substâncias ficam dispensados. “Este estudo é uma prova de que devemos olhar para o paciente como um todo e não atentar apenas à busca pela cura. A qualidade de vida e o bem-estar dos portadores de doença de Chagas são de extrema importância, principalmente no caso de uma doença negligenciada, que afeta pessoas pobres e expressa um quadro de depressão, que pode contribuir para mantê-las nesta condição de pobreza. É nossa missão lhes ajudar a ter perspectiva de vida”, finaliza.
Parceria.
O Laboratório de Biologia Molecular e Doenças Endêmicas do IOC colaborou no estudo, bem como pesquisadores do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Laboratório de Farmacologia da Neuroplasticidade e do Comportamento, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
*Reportagem: Isadora Marinho
Permitida a reprodução sem fins lucrativos do texto desde que citada a fonte (Comunicação / Instituto Oswaldo Cruz)