Fiocruz
Relatos: Manguinhos

O recruta
“- Em que anno está o Sr? - No terceiro. - Tem medo da peste? - Não, senhor. - Está disposto a trabalhar tantas horas quantas forem necessárias para cumprir as suas obrigações, sem dependência de nenhum horário fixo? - Perfeitamente. - Agora uma ultima pergunta, a qual ligo muita importancia: O Sr. conhece alguma cousa de bacteriologia?

O moço teve um momento de duvida: de um lado, a fascinação que exercia sobre si o inesperado cargo de auxiliar de um verdadeiro scientista, além dos proventos que d’ahi lhe adviriam; de outro lado, a sua consciência que o compellia a dizer a verdade. Optou por esta, deixando-se, porém, cahir interiormente n’uma crise de abatimento moral.
- Não, senhor.
- Pois está muito bem; é essa uma das condições exigidas.

Tempos depois, valendo-se da bondosa condescendência do Mestre, o ex-recruta perguntou-lhe curioso:
- Lembra-se das condições que o Sr. me apresentou para ser seu ajudante?
- Mais ou menos.
- Porque é que o Sr. fazia questão de um auxiliar sem nenhuns conhecimentos de microbiologia?
- Por uma razão muito simples: porque si você soubesse alguma cousa da matéria, devia ser muito pouco, só servindo para lhe dar presumpção e portanto difficultar o seu aprendizado.
E eu prefiro certos ignorantes...”

[Relato de Ezequiel Dias sobre o episódio de sua própria seleção para compor a equipe de Manguinhos, nos idos de 1899-1900]

Sonho
“No cargo de Director de Saude, tinha Oswaldo Cruz opportunidade e facilidade para levar a cabo a edificação do Instituto, que tem, hoje o seu nome, e, ampliando-lhe o programma de estudos, organizar a Escola de Medicina Experimental. Era esse o grande objectivo de sua vida, a preoccupação primordial do seu espírito, o seu sonho dourado. Só um homem do enorme prestigio e máscula energia de Oswaldo Cruz seria capaz de realizar, em nosso meio, o milagre de levantar e apparelhar aquelle “palácio encantado” de puro estylo mourisco, cheio de belleza e esplendor, para a sede do Instituto de Medicina Experimental. Esmerou-se em provel-o de tudo quanto a apurada industria de construcção e artefactos para laboratório têm engenhado de mais perfeito para o conforto maior e melhor produção scientifica. Uniu á arte as exigências da technica experimental mais rigorosa.” [Relato de Egydio Salles Guerra]

A chave mestra
“O Diretor possuía uma chave “mestra”, que lhe permitia a entrada por toda a parte e da qual se servia frequentemente para penetrar num laboratório quando o técnico ainda não tinha chegado, com o intuito de satisfazer sua curiosidade em observar o resultado de uma experiência que acompanhava e não havia ficado completa na véspera, durante sua permanência no Instituto ou, para examinar uma preparação ao microscópio cuja coloração não ficara terminada, no momento da sua partida e a qual deixávamos junto ao microscópio, ao seu alcance às vezes com uma indicação, a lápis num pedaço de papel, a respeito do que já observáramos.” [Relato de Henrique Aragão]

O tesoureiro
“Andava á procura de emprego um rapaz a cuja família Oswaldo tributava especial sentimento de gratidão e amizade. Não havia ainda o cargo de bibliothecario do Instituto. O Mestre deu-lh’o. Mas o moço não soube corresponder aos desejos do amigo, mostrando-se tão inhabil que cahiu em pleno ridículo e desprestigio. Naturalmente, todos extranhavam a excessiva complacência do Director, sempre tão exigente e rigoroso. Este, porém, continuava impassível até que, de súbito, sem que ninguém esperasse, o joven desappareceu da “cidade dos livros” (que naquelle tempo funccionava provisoriamente n’um barracão de madeira) e surgiu em novo posto; no almoxarifado. Foi uma transfiguração; o ultimo dos bibliothecarios passou a ser o primeiro dos almoxarifes, E hoje a sua prestigiada posição de thesoureiro representa um dos cargos de mais importância na vida administrativa de Manguinhos.” [Relato de Ezequiel Dias]

O bibliotecário
“Foi ele que desde o início organizou e cuidou com carinho das vastas e magníficas coleções da biblioteca de que era guardião devotado. Culto, conhecendo várias línguas, prezava acima de tudo a disciplina. Contou-me que certa vez, quando ia tomar a condução de volta do Instituto, já lá estava sentado Oswaldo Cruz que empunhava vários livros e, dentre eles, um com a capa vermelha e as letras douradas características dos livros encadernados no Instituto. Overmeer dirigiu-se a Oswaldo e disse: “Dr. Oswaldo, esse livro é da biblioteca e não pode sair de lá, conforme suas ordens”. Oswaldo entregou-lhe então obedientemente o livro de volta. Overmeer disse-me, rindo, que Oswaldo queria experimentá-lo e ficou satisfeito com o teste.” [Relato de Henrique Aragão sobre o episódio envolvendo Oswaldo Cruz e o holandês Assuerus Overmeer, bibliotecário do Instituto]

Almoxarifado
“Sentia ele um especial prazer em atender a tudo o que se pudesse ali necessitar para nossas pesquisas e, não raro, antes que lhe solicitássemos determinado material avisava que já se acahava o mesmo no almoxarifado à nossa disposição, anunciando ainda que já encomendara outro que viríamos a necessitar, em breve, pois estava sempre ao corrente dos trabalhos e investigações que íamos realizando. Como não havia jantar no Instituto, trazíamos nossos farnéis para o repasto vesperal de vez que trabalhávamos até tarde da noite. Reparando nesta circunstância, o Mestre tomou providências, reservadamente, e um belo dia fomos surpreendidos com a notícia de que haveria jantar, dali em diante, assim como acomodações para aqueles que desejassem pernoitar no Instituto, presos às experiências que não deviam ser interrompidas.” [Relato de Henrique Aragão]

Coletivo #1
“Sereno e justo, possuindo unidade e fortaleza de caracter inimitáveis, soube sempre, na direcção do seu Instituto, com a doçura de gestos que constituía uma das melhores características de sua individualidade, manter a harmonia collectiva imprescindível á normalidade de trabalhos e ao progresso da Instituição.” [Relato de Carlos Chagas]

Coletivo #2
“Quando havia ainda poucos auxiliares no Instituto e ele via um dos técnicos ou um simples estudante em dificuldade para realizar sozinho um dado trabalho logo ia ajudá-lo e muitas vezes o vimos segurando um cabrito ou um coelho para facilitar a sangria ou a inoculação. Outras vezes preparava um aparelho para a experiência em curso e se ia assistir a uma autópsia tomava a si escrever o protocolo a medida que o anatomo patologista trabalhava no cadáver. Todos estes serviços ele os prestava despretenciosamente com mais cativante espírito de cooperação. Também agradava-lhe muito ver um de nós sacrificar alguns instantes de seu trabalho próprio para auxiliar um companheiro em uma aventual dificuldade no decurso de uma pesquisa ou trabalho de rotina.” [Relato de Henrique Aragão]

Coletivo #3
“E é de salientar, nesse ponto, a abnegação do mestre, que ao interesse collectivo e á grandeza da nova escola, na missão absorvente de educar e orientar discípulos, sempre dispensou o melhor de seu esforço, em prejuízo, ás vezes, de sua fama de pesquisador. Poderia elle, de preferência, aproveitar em benefício do próprio nome, ainda mais o enaltecendo, os superiorees privilégios de sua rara mentalidade; julgou, porém, melhor servir a altos desígnios, na acção impessoal de organizar esforços, crear iniciativas, orientar inteligências, designar methodos scientificos, proporcionar, emfim, aos experimentadores da sua escola, todos os elementos seguros de êxito. E procurava occultar-se na obra realizada, ahi sempre exaltando a valia exclusiva do discípulo, de cujo successo aproveitava as mais puras e compensadoras alegrias. Aliás esse desprendimento foi o traço mais característico e nobilitante na direcção de Oswaldo Cruz, que aos companheiros de Manguinhos cedia as melhores opportunidades de efficiencia e brilho profiffionaes, nos trabalhos technicos de maior relevância e mais fácil repercussão.” [Relato de Henrique Aragão]

Arquitetura
“A primeira ideia que ocorrera a OSWALDO, ao arquitetar o levantamento de um grande edifício para Manguinhos, foi a de fazê-lo em estilo bizantino, chegando mesmo a esboçá-lo, porém depois, de tratar do assunto com LUIZ DE MORAES, suas preferências encaminharam-se para o estilo mourisco, mais rico, mais grandioso e mais fortemente evocador de mistérios como convinha à sede de uma instituição destinada à simbolizar a grandeza da ciência e a perscrutar os segredos da vida.” [Relato de Henrique Aragão sobre a escolha do estilo arquitetônico do Castelo de Manguinhos]

Memórias
“Sempre preocupado em melhorar as atividades do Instituto, Oswaldo, em fins de 1908, resolveu editar as “Memórias” destinadas a divulgação dos trabalhos científicos, cujo número aumentava dia a dia e agora capazes de assegurar vida a uma publicação dessa ordem. Como não houvesse, na época, no Instituto, quem pudesse cuidar do assunto ele tomou a si todo o trabalho desde a escolha das máquinas impressoras, seleção dos tipos, encomendada do papel, entendimentos com litógrafos e especialistas na feitura de “clichês”, a seleção dos tradutores para os artigos e finalmente ainda a revisão das provas, sem demonstrar, como de costume, o menor enfado por todo o labor rotineiro que tomara a si. Graças ao seu dedicado esforço, em abril de 1909 apareceu o primeiro fascículo das “Memórias do Instituto Oswaldo Cruz” muito bem impresso, tendo cada artigo um texto em português e outro em francês, inglês ou alemão à vontade do autor para tornar o assunto accessível aos leitores estrangeiros desconhecedores do nosso idioma. Diversos desses fascículos formavam um volume e hoje o número destes atinge a quarenta e oito em quarenta e um anos de ininterrupta publicação da revista. Neles tem sido divulgada uma grande parte dos mais importantes trabalhos científicos de Manguinhos, aparecendo outros, em revistas especializadas nacionais e estrangeiras. Durante muito tempo encarregou-se Oswaldo dos trabalhos relativos a publicação das “Memórias”, esmerando-se para que saíssem perfeitas e unicamente quando tinha de ausentar-se passava a tarefa a Lutz que a executava com muito zelo e boa vontade.” [Relato de Henrique Aragão sobre a criação da revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz]

Amor e respeito
“Nas reminiscências affectuosas desta casa, bem fixados no sentimento de quantos aqui recebemos os benefícios de seu affecto, perduram os melhores traços da individualidade moral de Oswaldo Cruz. Possuia elle o raro privilegio de se fazer, ao mesmo tempo, amado e obedecido, desse modo fundamentado a ascendência de sua vontade soberana, em garantias de lealdade e de affeições pessoaes decisivas. Todos os funcionários de Manguinhos, não importava a hierarchia de posição, sabiam reconhecer no mestre o melhor dos amigos e o mais seguro amparo de todos os reveses e infortúnios. E compensavam pelo esforço no trabalho e pela dedicação á obra collectiva, o conforto moral de uma direcção carinhosa e tolerante, garantidora de todos os direitos, e merecedora, por isso mesmo, da observância exacta de todos os deveres.” [Relato de Henrique Aragão]

Legado
“Apesar de todas as lutas que tinha de sustentar na administração pública e contra aqueles cujos interesses feria com a aplicação de medidas sanitárias benéficas para o povo, Oswaldo não deixava de vir regularmente a Manguinhos. Entrava nos laboratórios quase sem fazer ruído e, às vezes, sem ser notado; observava os discípulos e depois passava a conversar com estes, satisfeito por sentir seus continuadores cada vez mais seguros na resolução dos problemas que lhes estavam afetos e, por isso, deixava-lhes agora toda a iniciativa para que adquirissem confiança em si mesmos e pudessem orientar-se sozinhos no campo das investigações científicas.” [Relato de Henrique Aragão sobre o período entre 1903 e 1909, quando Oswaldo Cruz assumiu dupla jornada, no Instituto de Manguinhos e na Diretoria Geral de Saúde Pública]

Segunda família
“Bem reconhecia elle, psychologo de largo tino, os nossos defeitos, contingencia humana inevitável; sabia, porém, neutralizal-os. Aos que vivíamos a seu lado, associados no mesmo objectivo de trabalho, dispensava o melhor de sua affeicção e desta casa, dos seus discípulos, constituiu uma segunda família, cujos destinos vigiava com o mesmo zelo que lhe merecia o venturoso lar. Espírito protector e nada resistia á grande força de seu exemplo e á segurança de seus princípios; além de que, educava pelo coração, fallando ás consciências aquella linguagem sempre singela e de belezas infinitas, que fascinava e convencia, orientando para o bem. E cumpre que assim seja; cumpre que elle, morto, continue a dirigir os que vivemos, na permanência daquellas normas de trabalho, que fizeram o renome de nossa escola, e daquelles elevados ideaes de sciencia, que fizeram a gloria imperecível de Oswaldo Cruz.” [Relato de Carlos Chagas]



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