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Pós-graduação em Medicina Tropical realiza primeira defesa em cotutela internacional

Em parceria com instituição da Guiana Francesa, tese apontou determinantes sociais do HIV e da Aids na fronteira entre os países 
Por Maíra Menezes20/04/2023 - Atualizado em 21/12/2023

A primeira tese desenvolvida no sistema de cotutela internacional no Programa de Pós-graduação em Medicina Tropical do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) jogou luz sobre um importante problema de saúde pública: a disseminação do HIV na fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa. 

Por meio do levantamento de dados e de entrevistas, o estudo apontou fatores que contribuem para as infecções pelo vírus e para os casos de Aids na região.

Estudo foi realizado dos dois lados da fronteira, em Oiapoque, no Amapá, e Saint Georges de l’Oyapock, na Guiana Francesa. Unidas pela Ponte Binacional, cidades são cercadas pela floresta amazônica e próximas de áreas de garimpo. Foto: Acervo pessoal

A pesquisa foi realizada pela bióloga Flávia Divino, que cursou o doutorado no IOC e no Programa de Pós-graduação em Diversidades, Desenvolvimento e Saúde na Amazônia, da Universidade da Guiana, na Guiana Francesa. A tese foi orientada pelos pesquisadores Paulo Peiter, do Laboratório de Doenças Parasitárias do Instituto, e Mathieu Nacher, da universidade franco-guianense. 

Com a defesa, realizada em 30 de março, Flávia recebeu dois títulos de doutora: em Medicina Tropical, pelo IOC, e em Diversidades, Saúde e Desenvolvimento na Amazônia, pela Universidade da Guiana.

Iniciativa importante para a internacionalização do ensino na Fiocruz, a cotutela permite a dupla titulação dos estudantes, que desenvolvem seus estudos de pós-graduação na Fundação e em instituições estrangeiras, através de acordos de cooperação.

“A cotutela é diferente de um sanduíche ou de um estágio porque você é aluno das duas instituições. Na pesquisa, a cotutela abriu portas para os dois lados da fronteira. Ao mesmo tempo, possibilitou aprender uma nova língua, fazer disciplinas na Universidade da Guiana e conviver com alunos de doutorado de lá. Tive muitas oportunidades”, comemorou Flávia, que recebeu também uma permissão de residência do governo francês após a conclusão da tese, com autorização para trabalhar no país até 2026.

Defesa da tese foi realizada no IOC, com transmissão online para Universidade da Guiana. Na foto, a partir da esquerda, Paulo Peiter, orientador da pesquisa no IOC; Nathalia Beatriz de Sá, Adriana Kelly dos Santos e José Henrique Pilloto, membros da banca, e Flávia Divino, autora da tese. Foto: Acervo pessoal

Com experiência no estudo da saúde nas fronteiras, Paulo Peiter ressalta que os resultados alcançados na tese se tornaram mais robustos com o sistema de cotutela.

“A grande dificuldade do estudo da saúde nas fronteiras é conseguir dados dois lados. A cooperação entre instituições, através da cotutela, foi fundamental para o acesso a informações e realização do trabalho de campo na Guiana Francesa. Fazer o mesmo estudo nos dois países permitiu compreender a dinâmica do HIV/Aids naquela região”, salientou o pesquisador, que integra o projeto ‘Observatórios Transfronteiriços do Meio Ambiente, do Clima e das Doenças Vetoriais – Laboratório Internacional Misto’ (LMI Sentinela), mantido em parceria pela Fiocruz, Universidade de Brasília (UnB) e Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD), da França.

Cidades gêmeas

A pesquisa foi realiza nas cidades de Oiapoque, no Amapá, e Saint Georges de l’Oyapock, na Guiana Francesa, situadas de lados opostos da fronteira e separadas pelo Rio Oiapoque. Para a realização do estudo, Flávia morou por seis meses na cidade brasileira e dois meses na comuna francesa. 

A investigação incluiu levantamento dos registros de HIV e Aids, mapeamento dos serviços de saúde, análise de prontuários, observações das atividades nos serviços e do cotidiano das cidades, além de entrevistas com profissionais de saúde e com a população. 

O trabalho de campo contemplou ainda a região de Vila Brasil, vilarejo situado a 6 horas de barco de Oiapoque, que concentra circulação de pessoas e comércio ligados ao garimpo. A atividade, que é majoritariamente ilegal, costuma atrair brasileiros para o território do país vizinho.

Segundo Flávia, o estudo apontou dinâmicas de disseminação do HIV que se relacionam com problemas na organização e oferta dos serviços de saúde e contextos sociais de vulnerabilidade. 

“O Brasil é pioneiro na luta contra o HIV, fornece medicamentos gratuitamente e nosso programa de controle é reconhecido no mundo inteiro, mas é preciso olhar com mais cuidado para os territórios. O Oiapoque apresenta falhas no acesso à saúde e na gama de cuidados que é preconizada no Ministério da Saúde, porque existem características únicas naquele ambiente”, comentou a recém-doutora.

Vista aérea das cidades de Oiapoque (à esquerda) e Saint Georges (à direita). Brasileiros são maioria entre pessoas com HIV em tratamento no país vizinho. Foto: Reprodução tese 'Fronteiras virais, epidemiológicas e sociais do HIV entre a Guiana Francesa e o extremo norte do Brasil'

A fronteira demarcada pelo Rio Oiapoque divide dois territórios com grande desigualdade. De um lado, o Amapá, um dos estados mais pobres do Brasil. De outro, a Guiana Francesa, domínio ultramarino francês e único território europeu nas Américas.

No Amapá, um dos dados que caracterizam a epidemia de HIV é o aumento anual dos casos de Aids, em contraste com o cenário de estabilização ou queda na maior parte do Brasil. Marcada pela baixa imunidade, que leva ao desenvolvimento de complicações, a Aids ocorre quando não há tratamento adequado da infecção pelo HIV.

A Guiana Francesa quase não apresenta casos de Aids. Entre os países da América Latina, o território alcançou a maior proporção de pessoas infectadas em tratamento e com carga viral indetectável. Porém, anualmente, novos casos de pessoas com HIV são registrados no território.

“A condição de fronteira é determinante para a configuração da epidemia de HIV/Aids na região. Oiapoque e Saint Georges são cidades gêmeas, que dependem uma da outra em questões econômicas e sociais, mas têm assimetria muito grande, com diferenças de todos os níveis”, ressaltou Flávia.

HIV/Aids e seus determinantes sociais

Entre os determinantes sociais para a disseminação do HIV e o avanço da doença, levando ao desenvolvimento da Aids, a pesquisa aponta a intensa mobilidade da população na região, associada, principalmente, ao garimpo. 

“A mobilidade é uma característica da fronteira, que é um lugar de passagem. Em Oiapoque, a flutuação da população é muito grande. As cidades naquela região surgiram pelo garimpo e a população flutua com câmbio, com o preço do ouro, com situações como o drama dos yanomamis, que faz com que os garimpeiros que lá estavam afluam para outras regiões, e com operações policiais que ocorrem dos dois lados da fronteira, uma vez que a maior parte do garimpo é ilegal”, enumera Paulo.

Flávia ministrou palestra para moradores de Oiapoque sobre HIV e Aids, em evento
promovido pela Secretaria de Saúde. Pesquisa identificou dificuldade de acesso
da população a informações sobre a doença. Foto: Acervo pessoal

A análise dos prontuários revelou que, entre 39 pessoas com HIV em tratamento em Saint George, 33 eram brasileiras, sendo que 29 eram moradores do Oiapoque em terapia na cidade vizinha. Em relação aos locais de origem, a maioria tinha nascido no Amapá, Pará e Maranhão.

Do lado brasileiro da fronteira, entre 62 pessoas com HIV em acompanhamento nos serviços de saúde do Oiapoque, 40% tinham passado anteriormente por atendimento na Guiana Francesa. Todos os pacientes moravam no Oiapoque, mas tinham origem em 28 municípios diferentes, a maioria no Amapá, Pará e Maranhão, além de alguns no Ceará, Goiás e São Paulo.

Entre os homens, o garimpo foi a ocupação mais citada, embora muitos pacientes parecessem ter reservas em declarar a profissão. Mesmo entre aqueles que indicaram outras ocupações, foram observados deslocamentos para áreas de garimpo, que levaram a interrupções ou abandono da terapia. Isso também ocorreu entre as mulheres, embora o trabalho no garimpo raramente fosse declarado.

“Os garimpeiros andam por vários locais, no Norte do Brasil, na Guiana Francesa, Suriname, Guiana, Venezuela. Eles ficam por um tempo no Oiapoque e quando têm a oportunidade de ir para o garimpo, deixam tudo e vão”, pontuou Flávia, acrescentando que outros fluxos de migração também ocorrem. 

“Nas entrevistas, vimos que muitas pessoas em Oiapoque são paraenses e maranhenses. Essas pessoas, algumas vezes, voltam para os seus locais de origem e outros chegam na região”, esclareceu.

Contextos de vulnerabilidade

Dos dois lados da fronteira, há mais homens do que mulheres com HIV e a categoria de transmissão declarada mais frequente é a heterossexual. Contextos sociais de vulnerabilidade e falta de acesso a informações sobre a doença foram outros determinantes identificados na pesquisa. 

“Faltam informações sobre HIV e Aids na fronteira e a população tem baixa escolaridade, por isso é preciso oferecer uma informação adequada. Também tem muitos fatores que colocam a população em vulnerabilidade. O garimpeiro, que mora e viaja nessa região, vive situações de ilegalidade, violência, superexposição a doenças. As profissionais do sexo são outra população vulnerável”, afirmou Flávia.

Problemas na cascata de cuidados, que vão do diagnóstico ao tratamento continuado, foram observados durante a pesquisa. Entre eles está a ausência de especialistas em infectologia em Oiapoque, que obriga o encaminhamento de pacientes para Macapá. Também falta de exames confirmatórios, de psicólogos e de treinamento dos profissionais de saúde, dificuldade de ouvir os pacientes e de promover a autonomia, além das interrupções no acompanhamento dos pacientes.

“Do outro lado, em Saint Georges, não ocorrem os mesmos problemas, o que faz com que muitos brasileiros procurem atendimento na Guiana Francesa”, contou Flávia. 

Além de contar com orientação de Mathieu Nacher, Flávia cursou disciplinas na Universidade da Guiana, em Caiena, como parte da formação no sistema de cotutela. Foto: Acervo pessoal

O trabalho identificou problemas importantes no registro de dados sobre HIV e Aids, com informações desencontradas entre os níveis local, estadual, nacional.

“Por exemplo, o registro do Sinan [sistema nacional para notificação de agravos] não é igual ao que está na Secretaria de Saúde, que não é igual ao que se acessa nas unidades básicas de saúde. Também o que está registrado na Guiana Francesa é diferente do Brasil. Isso dificulta o planejamento das ações de saúde na região”, avaliou a recém-doutora.

Além de contribuir para políticas públicas, o estudo avançou em respostas para questões levantadas em estudos anteriores sobre a disseminação da HIV na região. Em sua tese de doutorado, que recebeu o Prêmio Capes de Tese 2006, Paulo observou um padrão distinto da epidemia de HIV no extremo norte do Brasil, nas regiões de fronteira, com incidência elevada de casos de Aids, num padrão semelhante ao do Caribe.

Realizado no campo da geografia, o estudo chamou atenção de Flávia durante o desenvolvimento do mestrado no Programa de Pós-graduação em Biologia Computacional e Sistemas do IOC.

Orientada pelo pesquisador Gonzalo Bello Betancor, do Laboratório de Aids e Imunologia Molecular do IOC, a estudante analisou os genomas dos vírus HIV no Brasil e identificou a circulação do subtipo HIV-1 B caribenho em estados da Região Norte do Brasil e no Maranhão. 

“Quando defendi o mestrado, não queria parar na biologia computacional. Procurei o Paulo para trabalhar na fronteira e investigar como ocorria essa dinâmica de disseminação no local. Na tese, não fizemos análise molecular dos vírus, mas vimos a circulação de pessoas, que pode explicar a presença do HIV caribenho não só na área da fronteira, mas em estados como Maranhão e Pará”, contou Flávia.

“Nós já tínhamos parcerias com o Amapá e a Guiana Francesa em pesquisas no laboratório, além da participação no laboratório misto internacional, com a França. Quando surgiu a oportunidade da cotutela no estudo da Flavia, tudo convergiu. Foi uma parceria muito interessante, que resultou na identificação desses determinantes sociais da epidemia de HIV na fronteira”, comentou Paulo.

Em parceria com instituição da Guiana Francesa, tese apontou determinantes sociais do HIV e da Aids na fronteira entre os países 
Por: 
maira

A primeira tese desenvolvida no sistema de cotutela internacional no Programa de Pós-graduação em Medicina Tropical do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) jogou luz sobre um importante problema de saúde pública: a disseminação do HIV na fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa. 

Por meio do levantamento de dados e de entrevistas, o estudo apontou fatores que contribuem para as infecções pelo vírus e para os casos de Aids na região.

Estudo foi realizado dos dois lados da fronteira, em Oiapoque, no Amapá, e Saint Georges de l’Oyapock, na Guiana Francesa. Unidas pela Ponte Binacional, cidades são cercadas pela floresta amazônica e próximas de áreas de garimpo. Foto: Acervo pessoal

A pesquisa foi realizada pela bióloga Flávia Divino, que cursou o doutorado no IOC e no Programa de Pós-graduação em Diversidades, Desenvolvimento e Saúde na Amazônia, da Universidade da Guiana, na Guiana Francesa. A tese foi orientada pelos pesquisadores Paulo Peiter, do Laboratório de Doenças Parasitárias do Instituto, e Mathieu Nacher, da universidade franco-guianense. 

Com a defesa, realizada em 30 de março, Flávia recebeu dois títulos de doutora: em Medicina Tropical, pelo IOC, e em Diversidades, Saúde e Desenvolvimento na Amazônia, pela Universidade da Guiana.

Iniciativa importante para a internacionalização do ensino na Fiocruz, a cotutela permite a dupla titulação dos estudantes, que desenvolvem seus estudos de pós-graduação na Fundação e em instituições estrangeiras, através de acordos de cooperação.

“A cotutela é diferente de um sanduíche ou de um estágio porque você é aluno das duas instituições. Na pesquisa, a cotutela abriu portas para os dois lados da fronteira. Ao mesmo tempo, possibilitou aprender uma nova língua, fazer disciplinas na Universidade da Guiana e conviver com alunos de doutorado de lá. Tive muitas oportunidades”, comemorou Flávia, que recebeu também uma permissão de residência do governo francês após a conclusão da tese, com autorização para trabalhar no país até 2026.

Defesa da tese foi realizada no IOC, com transmissão online para Universidade da Guiana. Na foto, a partir da esquerda, Paulo Peiter, orientador da pesquisa no IOC; Nathalia Beatriz de Sá, Adriana Kelly dos Santos e José Henrique Pilloto, membros da banca, e Flávia Divino, autora da tese. Foto: Acervo pessoal

Com experiência no estudo da saúde nas fronteiras, Paulo Peiter ressalta que os resultados alcançados na tese se tornaram mais robustos com o sistema de cotutela.

“A grande dificuldade do estudo da saúde nas fronteiras é conseguir dados dois lados. A cooperação entre instituições, através da cotutela, foi fundamental para o acesso a informações e realização do trabalho de campo na Guiana Francesa. Fazer o mesmo estudo nos dois países permitiu compreender a dinâmica do HIV/Aids naquela região”, salientou o pesquisador, que integra o projeto ‘Observatórios Transfronteiriços do Meio Ambiente, do Clima e das Doenças Vetoriais – Laboratório Internacional Misto’ (LMI Sentinela), mantido em parceria pela Fiocruz, Universidade de Brasília (UnB) e Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD), da França.

Cidades gêmeas

A pesquisa foi realiza nas cidades de Oiapoque, no Amapá, e Saint Georges de l’Oyapock, na Guiana Francesa, situadas de lados opostos da fronteira e separadas pelo Rio Oiapoque. Para a realização do estudo, Flávia morou por seis meses na cidade brasileira e dois meses na comuna francesa. 

A investigação incluiu levantamento dos registros de HIV e Aids, mapeamento dos serviços de saúde, análise de prontuários, observações das atividades nos serviços e do cotidiano das cidades, além de entrevistas com profissionais de saúde e com a população. 

O trabalho de campo contemplou ainda a região de Vila Brasil, vilarejo situado a 6 horas de barco de Oiapoque, que concentra circulação de pessoas e comércio ligados ao garimpo. A atividade, que é majoritariamente ilegal, costuma atrair brasileiros para o território do país vizinho.

Segundo Flávia, o estudo apontou dinâmicas de disseminação do HIV que se relacionam com problemas na organização e oferta dos serviços de saúde e contextos sociais de vulnerabilidade. 

“O Brasil é pioneiro na luta contra o HIV, fornece medicamentos gratuitamente e nosso programa de controle é reconhecido no mundo inteiro, mas é preciso olhar com mais cuidado para os territórios. O Oiapoque apresenta falhas no acesso à saúde e na gama de cuidados que é preconizada no Ministério da Saúde, porque existem características únicas naquele ambiente”, comentou a recém-doutora.

Vista aérea das cidades de Oiapoque (à esquerda) e Saint Georges (à direita). Brasileiros são maioria entre pessoas com HIV em tratamento no país vizinho. Foto: Reprodução tese 'Fronteiras virais, epidemiológicas e sociais do HIV entre a Guiana Francesa e o extremo norte do Brasil'

A fronteira demarcada pelo Rio Oiapoque divide dois territórios com grande desigualdade. De um lado, o Amapá, um dos estados mais pobres do Brasil. De outro, a Guiana Francesa, domínio ultramarino francês e único território europeu nas Américas.

No Amapá, um dos dados que caracterizam a epidemia de HIV é o aumento anual dos casos de Aids, em contraste com o cenário de estabilização ou queda na maior parte do Brasil. Marcada pela baixa imunidade, que leva ao desenvolvimento de complicações, a Aids ocorre quando não há tratamento adequado da infecção pelo HIV.

A Guiana Francesa quase não apresenta casos de Aids. Entre os países da América Latina, o território alcançou a maior proporção de pessoas infectadas em tratamento e com carga viral indetectável. Porém, anualmente, novos casos de pessoas com HIV são registrados no território.

“A condição de fronteira é determinante para a configuração da epidemia de HIV/Aids na região. Oiapoque e Saint Georges são cidades gêmeas, que dependem uma da outra em questões econômicas e sociais, mas têm assimetria muito grande, com diferenças de todos os níveis”, ressaltou Flávia.

HIV/Aids e seus determinantes sociais

Entre os determinantes sociais para a disseminação do HIV e o avanço da doença, levando ao desenvolvimento da Aids, a pesquisa aponta a intensa mobilidade da população na região, associada, principalmente, ao garimpo. 

“A mobilidade é uma característica da fronteira, que é um lugar de passagem. Em Oiapoque, a flutuação da população é muito grande. As cidades naquela região surgiram pelo garimpo e a população flutua com câmbio, com o preço do ouro, com situações como o drama dos yanomamis, que faz com que os garimpeiros que lá estavam afluam para outras regiões, e com operações policiais que ocorrem dos dois lados da fronteira, uma vez que a maior parte do garimpo é ilegal”, enumera Paulo.

Flávia ministrou palestra para moradores de Oiapoque sobre HIV e Aids, em evento
promovido pela Secretaria de Saúde. Pesquisa identificou dificuldade de acesso
da população a informações sobre a doença. Foto: Acervo pessoal

A análise dos prontuários revelou que, entre 39 pessoas com HIV em tratamento em Saint George, 33 eram brasileiras, sendo que 29 eram moradores do Oiapoque em terapia na cidade vizinha. Em relação aos locais de origem, a maioria tinha nascido no Amapá, Pará e Maranhão.

Do lado brasileiro da fronteira, entre 62 pessoas com HIV em acompanhamento nos serviços de saúde do Oiapoque, 40% tinham passado anteriormente por atendimento na Guiana Francesa. Todos os pacientes moravam no Oiapoque, mas tinham origem em 28 municípios diferentes, a maioria no Amapá, Pará e Maranhão, além de alguns no Ceará, Goiás e São Paulo.

Entre os homens, o garimpo foi a ocupação mais citada, embora muitos pacientes parecessem ter reservas em declarar a profissão. Mesmo entre aqueles que indicaram outras ocupações, foram observados deslocamentos para áreas de garimpo, que levaram a interrupções ou abandono da terapia. Isso também ocorreu entre as mulheres, embora o trabalho no garimpo raramente fosse declarado.

“Os garimpeiros andam por vários locais, no Norte do Brasil, na Guiana Francesa, Suriname, Guiana, Venezuela. Eles ficam por um tempo no Oiapoque e quando têm a oportunidade de ir para o garimpo, deixam tudo e vão”, pontuou Flávia, acrescentando que outros fluxos de migração também ocorrem. 

“Nas entrevistas, vimos que muitas pessoas em Oiapoque são paraenses e maranhenses. Essas pessoas, algumas vezes, voltam para os seus locais de origem e outros chegam na região”, esclareceu.

Contextos de vulnerabilidade

Dos dois lados da fronteira, há mais homens do que mulheres com HIV e a categoria de transmissão declarada mais frequente é a heterossexual. Contextos sociais de vulnerabilidade e falta de acesso a informações sobre a doença foram outros determinantes identificados na pesquisa. 

“Faltam informações sobre HIV e Aids na fronteira e a população tem baixa escolaridade, por isso é preciso oferecer uma informação adequada. Também tem muitos fatores que colocam a população em vulnerabilidade. O garimpeiro, que mora e viaja nessa região, vive situações de ilegalidade, violência, superexposição a doenças. As profissionais do sexo são outra população vulnerável”, afirmou Flávia.

Problemas na cascata de cuidados, que vão do diagnóstico ao tratamento continuado, foram observados durante a pesquisa. Entre eles está a ausência de especialistas em infectologia em Oiapoque, que obriga o encaminhamento de pacientes para Macapá. Também falta de exames confirmatórios, de psicólogos e de treinamento dos profissionais de saúde, dificuldade de ouvir os pacientes e de promover a autonomia, além das interrupções no acompanhamento dos pacientes.

“Do outro lado, em Saint Georges, não ocorrem os mesmos problemas, o que faz com que muitos brasileiros procurem atendimento na Guiana Francesa”, contou Flávia. 

Além de contar com orientação de Mathieu Nacher, Flávia cursou disciplinas na Universidade da Guiana, em Caiena, como parte da formação no sistema de cotutela. Foto: Acervo pessoal

O trabalho identificou problemas importantes no registro de dados sobre HIV e Aids, com informações desencontradas entre os níveis local, estadual, nacional.

“Por exemplo, o registro do Sinan [sistema nacional para notificação de agravos] não é igual ao que está na Secretaria de Saúde, que não é igual ao que se acessa nas unidades básicas de saúde. Também o que está registrado na Guiana Francesa é diferente do Brasil. Isso dificulta o planejamento das ações de saúde na região”, avaliou a recém-doutora.

Além de contribuir para políticas públicas, o estudo avançou em respostas para questões levantadas em estudos anteriores sobre a disseminação da HIV na região. Em sua tese de doutorado, que recebeu o Prêmio Capes de Tese 2006, Paulo observou um padrão distinto da epidemia de HIV no extremo norte do Brasil, nas regiões de fronteira, com incidência elevada de casos de Aids, num padrão semelhante ao do Caribe.

Realizado no campo da geografia, o estudo chamou atenção de Flávia durante o desenvolvimento do mestrado no Programa de Pós-graduação em Biologia Computacional e Sistemas do IOC.

Orientada pelo pesquisador Gonzalo Bello Betancor, do Laboratório de Aids e Imunologia Molecular do IOC, a estudante analisou os genomas dos vírus HIV no Brasil e identificou a circulação do subtipo HIV-1 B caribenho em estados da Região Norte do Brasil e no Maranhão. 

“Quando defendi o mestrado, não queria parar na biologia computacional. Procurei o Paulo para trabalhar na fronteira e investigar como ocorria essa dinâmica de disseminação no local. Na tese, não fizemos análise molecular dos vírus, mas vimos a circulação de pessoas, que pode explicar a presença do HIV caribenho não só na área da fronteira, mas em estados como Maranhão e Pará”, contou Flávia.

“Nós já tínhamos parcerias com o Amapá e a Guiana Francesa em pesquisas no laboratório, além da participação no laboratório misto internacional, com a França. Quando surgiu a oportunidade da cotutela no estudo da Flavia, tudo convergiu. Foi uma parceria muito interessante, que resultou na identificação desses determinantes sociais da epidemia de HIV na fronteira”, comentou Paulo.

Edição: 
Vinicius Ferreira

Permitida a reprodução sem fins lucrativos do texto desde que citada a fonte (Comunicação / Instituto Oswaldo Cruz)