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75 anos de contribuições para saúde: história e impacto da Coleção de Moluscos do IOC

Com cerca de 220 mil exemplares, é considerado um dos acervos mais importantes da América Latina no tema
Por Max Gomes27/12/2023 - Atualizado em 28/05/2024
As curadoras Silvana Thiengo e Suzete Gomes observam exemplares da gaveta do acervo didático de conchas da Coleção de Moluscos. Foto: Gutemberg Brito

O ano era 1948. Wladimir Lobato Paraense e Newton Deslandes iniciavam a coleta e a guarda de exemplares da espécie Biomphalaria glabrata para estudar caramujos implicados no ciclo de transmissão de doenças parasitárias.

Com o passar dos anos, aquele que nascera como um acervo pessoal ganharia novos rumos e se tornaria a Coleção de Moluscos do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), uma das mais importantes da América Latina, alcançando, em 2023, a marca de 75 anos.

Com diferentes formas, tamanhos e comportamentos, os moluscos constituem um filo taxonômico de animais invertebrados como caramujos, lesmas, mexilhões, ostras, polvos e lulas. Essas criaturas podem ser encontradas nos mais variados ambientes terrestres e aquáticos: nos solos das florestas, em lagos de água doce, nas profundezas dos oceanos e até mesmo nos jardins de casas das grandes cidades.

O foco da Coleção é direcionado a um grupo específico: a classe Gastropoda, a maior e mais diversificada desse filo. São mais de 220 mil exemplares preservados em aproximadamente 15 mil lotes, representando mais de 100 espécies distintas.

“A Coleção sempre teve um viés voltado para a saúde humana. É uma característica presente desde os primeiros caramujos guardados, quando Dr. Lobato investigava espécies que poderiam atuar como hospedeiros intermediários do parasito Schistosoma mansoni, causador da esquistossomose”, conta a curadora Silvana Thiengo.

Silvana segura exemplares dos primeiros depósitos feitos por Lobato Paraense. Foto: Gutemberg Brito

Os primeiros passos da Coleção foram dados enquanto Wladimir era vinculado ao Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) de Belo Horizonte, em Minas Gerais. O acervo percorreu o Brasil ao lado do pesquisador em instituições em que ele atuou.

Foi em 1976, quando Wladimir retornou ao IOC, que o material encontrou sua estabilidade no Laboratório de Malacologia do Instituto, onde é mantido até os dias atuais.

“Inicialmente, Dr. Lobato considerava seu acervo como uma coleção pessoal para estudo. Com seu retorno ao Instituto, ele foi percebendo que se tratava, de fato, de uma coleção biológica aberta, para consulta e, também, depósito de outros pesquisadores”, relata Silvana.

O legado deixado por Lobato Paraense e Deslandes ressoa até os dias atuais, contribuindo para o progresso do conhecimento científico e da conservação da biodiversidade brasileira. Atualmente, a Coleção abriga não apenas exemplares da classe Gastropoda, mas também algumas amostras de Bivalvia (classe de moluscos com concha dividida em duas partes, como os mexilhões, por exemplo).

“A maior parte do nosso acervo consiste em gastrópodes da família planorbidae, que são os caramujos que vivem em lagos de água doce, como as espécies do gênero Biomphalaria. No entanto, possuímos também outras variedades de gastrópodes”, destaca a curadora adjunta, Suzete Gomes.

A concha em espiral é uma característica marcante de algumas espécies de moluscos da classe Gastropoda. Foto: Gutemberg Brito

Desde 2015, quando Suzete assumiu a curadoria adjunta, os gastrópodes terrestres passaram a integrar o escopo de interesse da Coleção.

“Os moluscos terrestres fazem parte da minha área de especialização, que abarcam parasitoses como a angiostrongilíase, na qual o ciclo de transmissão envolve a espécie Achatina fulica, popularmente conhecida como caramujo africano”, conta Suzete.

Apesar da concentração na região neotropical, o acervo conta com amostras provenientes de rios, lagos, córregos e ambientes terrestres de mais de 60 países ao redor mundo, incluindo as Américas, Europa, África, Oceania e Ásia. Do Brasil, os exemplares provêm de todos os estados e do Distrito Federal, sendo o Rio de Janeiro a união federativa de maior representatividade, contendo amostras de todos os 92 municípios.

“Conservamos exemplares de regiões que hoje são radicalmente diferentes devido à urbanização e mudanças climáticas. É um acervo de grande importância para o conhecimento e conservação da biodiversidade, pois guarda a memória de muitas regiões”, enfatiza Silvana.

As lesmas são gastropodes terrestres que ao longo do processo evolutivo perderam as conchas. Foto: Gutemberg Brito

Mudança de perspectiva

Embora possua três quartos de século, as curadoras destacam que, só recentemente, o acervo tem recebido uma maior valorização. Segundo Silvana, isso se deve a uma mudança de perspectiva em relação às coleções biológicas em todo o país, que passaram a ter mais visibilidade nas últimas duas décadas.

“As coleções institucionais começaram a receber o devido reconhecimento apenas após os anos 2000. Lembro-me de uma mudança significativa na percepção institucional em consequência dos primeiros simpósios sobre coleções científicas, nos quais foram debatidos temas cruciais sobre esses patrimônios”, rememora.

No IOC, Silvana destaca a criação da Câmara Técnica de Coleções, que reúne todos os curadores e a Diretoria do Instituto para discutir demandas e necessidades. Uma das conquistas mais significativas foi a aquisição de armários de aço, compactos e deslizantes, capazes de armazenar milhares de amostras com segurança, viabilizada por um projeto do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

“O apoio que as Coleções vêm recebendo do IOC e da Fiocruz é fundamental. Foi uma luta árdua para alcançar essa visibilidade. Estamos progredindo, principalmente em questões como recursos financeiro e humanos. Precisamos de mais investimentos e de mais pessoas nas esquipes. Manter um acervo desse porte é um desafio enorme”, completa Silvana.

Acervo em expansão

Em constante crescimento, a Coleção de Moluscos recebe, em média, mil lotes de exemplares anualmente. A maioria desses depósitos provém de estudos e pesquisas realizadas pelo próprio Laboratório.

“Frequentemente, realizamos expedições de ensino, com as quais vamos a localidades onde é possível encontrar espécies de moluscos estudadas por nossos alunos de mestrado e doutorado, para que eles possam coletá-las e conduzir seus trabalhos de forma mais abrangente”, compartilha Silvana.

A Coleção categoriza seus espécimes em lotes, variando de 1 a até mesmo 1000 exemplares. Exemplo: quando animais da mesma espécie são coletados em um local, todos são designados com o mesmo número de lote. As conchas e corpos moles separados posteriormente nas salas seca e úmida permanecem com o mesmo número de lote. Foto: Gutemberg Brito

A prática de ir aos locais de identificação das espécies é uma tradição iniciada por Lobato Paraense que, para fazer revisão taxonômica dos planorbídeos, coletava esses moluscos em suas localidades tipo (que são as regiões onde a espécie foi encontrada pela primeira vez e descrita pelos autores).

“Os naturalistas europeus que vieram aqui entre os séculos XVII e XIV, coletavam e descreviam as espécies para então depositá-las em museus da Europa. Quando Lobato buscava estudar mais sobre um desses moluscos, ia até a localidade descrita para também conseguir coletar um exemplar e descrever suas características com precisão. Seguindo o caminho desses naturalistas, ele viajou por diversos países da América do Sul”, conta Silvana.

Outro fator significativo que contribui para o aumento do número de exemplares na Coleção são os projetos de pesquisa conduzidos pelo Laboratório.

“O acervo enriqueceu muito com o levantamento de espécies do estado do Rio de Janeiro, a partir da coleta de moluscos de água doce em todos os 92 municípios. Também depositamos muitos materiais a partir de projetos em áreas impactadas por usinas hidrelétricas, que tiveram coletas antes e depois do alagamento dessas áreas”, recorda Silvana.

Depósitos também são realizados a partir de materiais recebidos pelo Serviço de Referência Nacional para Esquistossomose-Malacologia, também alocado no Laboratório.

“Em casos de surtos de parasitoses em que os moluscos são os hospedeiros intermediários, o Ministério da Saúde solicita que o Serviço investigue a incidência desses animais, ou se estão infectados. Muitos espécimes que coletamos, ou recebemos, são depositados na Coleção”, acrescenta Suzete.

Também são recebidos exemplares de moluscos terrestres que agem como pragas agrícolas e urbanas. O caramujo africano é um exemplo de destaque, sendo uma das espécies terrestres mais reconhecidas atualmente por aparecer em quintais, praças, jardins e terrenos baldios. A espécie apresenta risco para a saúde por ser um potencial transmissor da meningite eosinofílica.

Equipe da Coleção de Moluscos do IOC. Foto: Gutemberg Brito
 

Preservação

Uma das preocupações centrais para as curadoras é a atualização de técnicas de preservação do acervo.

“Temos muitos espécimes tipos, que são aqueles usados na descrição de novas espécies. Além disso, acompanhamos de perto como muitos desses exemplares foram coletados através de esforços consideráveis em expedições. Todo esse investimento humano e financeiro para o estudo de moluscos não pode ser desperdiçado e, por isso, reforçamos a importância de termos uma estrutura sólida para preservar esse material para estudos atuais e das futuras gerações”, destaca Suzete.

Atualmente, o acervo é dividido em duas salas, de acordo com as especificidades dos exemplares. Na sala seca, mantida em temperatura ambiente, são acondicionadas as conchas dos moluscos em sacos plásticos ou frascos de vidro.

Na sala úmida, com temperatura controlada, são preservados os corpos desses animais em potes de vidro contendo solução de Railliet-Henry ou álcool a 70%. Em ambos os ambientes, os exemplares estão em armários de aço deslizantes.

“A separação das salas realizada na década passada foi um avanço muito importante para a Coleção, pois a solução de Railliet-Henry, que tem formol e ácido acético na sua composição, exala vapores que podem corroer as conchas ao longo do tempo”, explica Silvana.

Exemplares históricos de conchas de moluscos que foram coletados em Aimorés, em Minas Gerais, e em Michigan, nos Estados Unidos. Foto: Gutemberg Brito

Outro avanço técnico foi a atualização na preservação dos corpos moles: para os novos depósitos, ao invés da solução de Railliet-Henry, o álcool tem sido o escolhido, tendo em vista as novas tecnologias e a possibilidade de realização de sequenciamento genético.

“A solução de Railliet-Henry preserva muito bem o corpo do animal para análises morfológicas, mas degrada o DNA. Com o advento das técnicas moleculares, preservar o material genético desses exemplares tornou-se essencial para novas descobertas”, revela Silvana.

Apesar das técnicas moleculares serem recentes, a preocupação com a genética desses animais vem desde a época de Lobato Paraense. No Laboratório, o pesquisador mantinha alguns exemplares de moluscos vivos para realizar cruzamento entre espécimes pigmentados e albinos. A técnica foi elogiada pelo biólogo e geneticista Theodosius Dobzhansky, cujo trabalho teve grande influência para o estabelecimento da síntese evolutiva moderna.

“Dr. Lobato sempre contava que foi elogiado por Dobzhansky durante uma visita do pesquisador ao Brasil, que teria achado muito interessante o uso do caráter de albinismo para cruzamentos. Como esses animais não deveria dar descendentes férteis, Dr. Lobato usava esse conceito para confirmar se eram, de fato, albinos ou se pertenciam a uma nova espécie”, explica Silvana.

“Dr. Lobato era muito inteligente e dedicado. Embora não tenha trabalhado com biologia molecular, pois já estava bem idoso e faleceu antes da difusão da tecnologia, ele chegou a publicar um trabalho destacando a importância dessa tecnologia como um instrumento para resolver os ‘complexos de espécies’, que são espécies com características muito próximas, sem uma demarcação exata entre elas”, completa.

A Coleção também faz sequenciamento genético de alguns exemplares de interesse. Recentemente, recebeu apoio institucional para adquirir um novo ultra congelador, visando a preservação de mais exemplares.

“A melhor forma de preservação é o congelamento, pois preserva melhor o DNA a longo prazo e não prejudica tanto o corpo do animal para estudos morfológicos. Como ainda não é uma prática que não ocorre de forma sistemática, iremos preservar alguns exemplares de interesse que ajudarão a compreender melhor esses organismos”, explica Suzete.

Era digital

Como parte das recentes ações de modernização, foi adquirido um equipamento de digitalização que tem contribuído para o enriquecimento da base de dados sobre a biodiversidade presente na coleção e ampliado o acesso dos espécimes pela internet.

“Contamos com um microscópio tridimensional que nos permite digitalizar os espécimes, graças ao trabalho do projeto ‘Preservo’, liderado no IOC pelo pesquisador Marcelo Pelajo. Com ele, podemos criar imagens em alta resolução de exemplares do acervo”, celebra Silvana.

O equipamento tem perfil multiusuário, possibilitando que outras Coleções e Laboratórios utilizem-no para gerar imagens de seus próprios exemplares.

O microscópio tridimensional captura imagens de moluscos em volume tridimensional a partir de um sistema robotizado de alta precisão, câmera digital integrada e conectividade com computador. Foto: Gutemberg Brito

De acordo com as curadoras, a disponibilização de imagens digitais de alta qualidade tem ampliado o acesso dos espécimes por outros pesquisadores, facilitando estudos e pesquisas, além de reduzir riscos de danos associados à manipulação de exemplares raros.

“Já digitalizamos todos os materiais tipo, aqueles que foram usados na descrição das espécies. Agora estamos seguindo conforme as demandas, seja pelo estado do material ou por projetos de pesquisa”, relata Suzete.

Desde 2012, a base de dados da Coleção também está disponível para consultas online, com acesso aberto ao público, através da plataforma SpeciesLink.

“Somos parte de uma grande comunidade global, e as informações disponibilizadas aqui têm o potencial de gerar conhecimentos que impactam o mundo”, afirma Silvana.

Rede de colaboração

Por desempenhar um trabalho de referência para estudos taxonômicos, sistemáticos, ecológicos e parasitológicos de moluscos, a Coleção possui notório reconhecimento no cenário científico nacional e internacional.

Nos últimos anos, a Coleção tem colaborado para a recuperação da Coleção de Mollusca do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, acometida pelo devastador incêndio de 2018, que destruiu o espaço físico da instituição.

“Temos exemplares semelhantes aos que eram preservados lá. Por isso, a equipe tem nos procurado para realizar consultas”, conta Suzete.

“Nossos alunos também têm separado materiais recém coletados para depositar na Coleção do Museu Nacional. Além disso, temos feito doações regulares de exemplares dos nossos lotes mais substanciais para ajudar na reconstrução desse histórico museu”, completa Silvana.

Uma das mais antigas e representativas coleções biológicas do Brasil, a Coleção de Mollusca do Museu Nacional possuía cerca de 40 mil lotes de moluscos marinhos, terrestres e de água doce do Brasil e do exterior.

Uma homenagem aos pioneiros

O acervo da Coleção de Moluscos do IOC está localizado no campus da Fiocruz, no Rio de Janeiro, mais especificamente no Pavilhão Adolpho Lutz. A escolha desse nome para o edifício não foi por acaso, sendo uma homenagem de Wladimir Lobato Paraense ao icônico pesquisador da Fiocruz.

“Dr. Lobato tinha uma grande devoção por Adolpho Lutz, que foi um pesquisador fantástico. Podemos dizer que ele era um ‘fã de carteirinha’. Quando houve a nomeação dos edifícios do IOC, o Dr. Lobato estava determinado a prestar essa homenagem à Lutz”, revela Silvana.

Adolpho Lutz teve uma grande contribuição à zoologia médica no Brasil, que incluía suas pesquisas sobre o Schistosoma mansoni e os moluscos responsáveis pela propagação da esquistossomose.

Serviços

A Coleção recebe amostras de moluscos límnicos e terrestres de várias regiões para identificação morfológica e molecular. Oferece a consulta e empréstimo de exemplares do acervo para pesquisadores e estudantes.

Outra possibilidade é o depósito de material biológico utilizado para a elaboração de teses e artigos. O acervo tem servido de fonte para mais de 150 publicações do Laboratório de Malacologia do IOC, possibilitando vários estudos sobre a morfologia, taxonomia, filogenia e biogeografia destes moluscos.

Além disso, a Coleção também presta suporte a uma variedade de atividades, como a identificação de espécimes para órgãos ligados à saúde e à agricultura; e a qualificação de recursos humanos em Malacologia Médica e Sistemática para profissionais e estudantes de graduação e de pós-graduação.

A divulgação científica também é uma marca, com presença garantida em eventos como ‘Fiocruz Pra Você’ e ‘Semana Nacional de Ciência e Tecnologia’.

Silvana e Suzete seguram uma das maquetes utilizadas pela Coleção em eventos para explicar o ciclo da esquistossomose. Foto: Gutemberg Brito
Com cerca de 220 mil exemplares, é considerado um dos acervos mais importantes da América Latina no tema
Por: 
max.gomes
As curadoras Silvana Thiengo e Suzete Gomes observam exemplares da gaveta do acervo didático de conchas da Coleção de Moluscos. Foto: Gutemberg Brito

O ano era 1948. Wladimir Lobato Paraense e Newton Deslandes iniciavam a coleta e a guarda de exemplares da espécie Biomphalaria glabrata para estudar caramujos implicados no ciclo de transmissão de doenças parasitárias.

Com o passar dos anos, aquele que nascera como um acervo pessoal ganharia novos rumos e se tornaria a Coleção de Moluscos do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), uma das mais importantes da América Latina, alcançando, em 2023, a marca de 75 anos.

Com diferentes formas, tamanhos e comportamentos, os moluscos constituem um filo taxonômico de animais invertebrados como caramujos, lesmas, mexilhões, ostras, polvos e lulas. Essas criaturas podem ser encontradas nos mais variados ambientes terrestres e aquáticos: nos solos das florestas, em lagos de água doce, nas profundezas dos oceanos e até mesmo nos jardins de casas das grandes cidades.

O foco da Coleção é direcionado a um grupo específico: a classe Gastropoda, a maior e mais diversificada desse filo. São mais de 220 mil exemplares preservados em aproximadamente 15 mil lotes, representando mais de 100 espécies distintas.

“A Coleção sempre teve um viés voltado para a saúde humana. É uma característica presente desde os primeiros caramujos guardados, quando Dr. Lobato investigava espécies que poderiam atuar como hospedeiros intermediários do parasito Schistosoma mansoni, causador da esquistossomose”, conta a curadora Silvana Thiengo.

Silvana segura exemplares dos primeiros depósitos feitos por Lobato Paraense. Foto: Gutemberg Brito

Os primeiros passos da Coleção foram dados enquanto Wladimir era vinculado ao Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) de Belo Horizonte, em Minas Gerais. O acervo percorreu o Brasil ao lado do pesquisador em instituições em que ele atuou.

Foi em 1976, quando Wladimir retornou ao IOC, que o material encontrou sua estabilidade no Laboratório de Malacologia do Instituto, onde é mantido até os dias atuais.

“Inicialmente, Dr. Lobato considerava seu acervo como uma coleção pessoal para estudo. Com seu retorno ao Instituto, ele foi percebendo que se tratava, de fato, de uma coleção biológica aberta, para consulta e, também, depósito de outros pesquisadores”, relata Silvana.

O legado deixado por Lobato Paraense e Deslandes ressoa até os dias atuais, contribuindo para o progresso do conhecimento científico e da conservação da biodiversidade brasileira. Atualmente, a Coleção abriga não apenas exemplares da classe Gastropoda, mas também algumas amostras de Bivalvia (classe de moluscos com concha dividida em duas partes, como os mexilhões, por exemplo).

“A maior parte do nosso acervo consiste em gastrópodes da família planorbidae, que são os caramujos que vivem em lagos de água doce, como as espécies do gênero Biomphalaria. No entanto, possuímos também outras variedades de gastrópodes”, destaca a curadora adjunta, Suzete Gomes.

A concha em espiral é uma característica marcante de algumas espécies de moluscos da classe Gastropoda. Foto: Gutemberg Brito

Desde 2015, quando Suzete assumiu a curadoria adjunta, os gastrópodes terrestres passaram a integrar o escopo de interesse da Coleção.

“Os moluscos terrestres fazem parte da minha área de especialização, que abarcam parasitoses como a angiostrongilíase, na qual o ciclo de transmissão envolve a espécie Achatina fulica, popularmente conhecida como caramujo africano”, conta Suzete.

Apesar da concentração na região neotropical, o acervo conta com amostras provenientes de rios, lagos, córregos e ambientes terrestres de mais de 60 países ao redor mundo, incluindo as Américas, Europa, África, Oceania e Ásia. Do Brasil, os exemplares provêm de todos os estados e do Distrito Federal, sendo o Rio de Janeiro a união federativa de maior representatividade, contendo amostras de todos os 92 municípios.

“Conservamos exemplares de regiões que hoje são radicalmente diferentes devido à urbanização e mudanças climáticas. É um acervo de grande importância para o conhecimento e conservação da biodiversidade, pois guarda a memória de muitas regiões”, enfatiza Silvana.

As lesmas são gastropodes terrestres que ao longo do processo evolutivo perderam as conchas. Foto: Gutemberg Brito

Mudança de perspectiva

Embora possua três quartos de século, as curadoras destacam que, só recentemente, o acervo tem recebido uma maior valorização. Segundo Silvana, isso se deve a uma mudança de perspectiva em relação às coleções biológicas em todo o país, que passaram a ter mais visibilidade nas últimas duas décadas.

“As coleções institucionais começaram a receber o devido reconhecimento apenas após os anos 2000. Lembro-me de uma mudança significativa na percepção institucional em consequência dos primeiros simpósios sobre coleções científicas, nos quais foram debatidos temas cruciais sobre esses patrimônios”, rememora.

No IOC, Silvana destaca a criação da Câmara Técnica de Coleções, que reúne todos os curadores e a Diretoria do Instituto para discutir demandas e necessidades. Uma das conquistas mais significativas foi a aquisição de armários de aço, compactos e deslizantes, capazes de armazenar milhares de amostras com segurança, viabilizada por um projeto do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

“O apoio que as Coleções vêm recebendo do IOC e da Fiocruz é fundamental. Foi uma luta árdua para alcançar essa visibilidade. Estamos progredindo, principalmente em questões como recursos financeiro e humanos. Precisamos de mais investimentos e de mais pessoas nas esquipes. Manter um acervo desse porte é um desafio enorme”, completa Silvana.

Acervo em expansão

Em constante crescimento, a Coleção de Moluscos recebe, em média, mil lotes de exemplares anualmente. A maioria desses depósitos provém de estudos e pesquisas realizadas pelo próprio Laboratório.

“Frequentemente, realizamos expedições de ensino, com as quais vamos a localidades onde é possível encontrar espécies de moluscos estudadas por nossos alunos de mestrado e doutorado, para que eles possam coletá-las e conduzir seus trabalhos de forma mais abrangente”, compartilha Silvana.

A Coleção categoriza seus espécimes em lotes, variando de 1 a até mesmo 1000 exemplares. Exemplo: quando animais da mesma espécie são coletados em um local, todos são designados com o mesmo número de lote. As conchas e corpos moles separados posteriormente nas salas seca e úmida permanecem com o mesmo número de lote. Foto: Gutemberg Brito

A prática de ir aos locais de identificação das espécies é uma tradição iniciada por Lobato Paraense que, para fazer revisão taxonômica dos planorbídeos, coletava esses moluscos em suas localidades tipo (que são as regiões onde a espécie foi encontrada pela primeira vez e descrita pelos autores).

“Os naturalistas europeus que vieram aqui entre os séculos XVII e XIV, coletavam e descreviam as espécies para então depositá-las em museus da Europa. Quando Lobato buscava estudar mais sobre um desses moluscos, ia até a localidade descrita para também conseguir coletar um exemplar e descrever suas características com precisão. Seguindo o caminho desses naturalistas, ele viajou por diversos países da América do Sul”, conta Silvana.

Outro fator significativo que contribui para o aumento do número de exemplares na Coleção são os projetos de pesquisa conduzidos pelo Laboratório.

“O acervo enriqueceu muito com o levantamento de espécies do estado do Rio de Janeiro, a partir da coleta de moluscos de água doce em todos os 92 municípios. Também depositamos muitos materiais a partir de projetos em áreas impactadas por usinas hidrelétricas, que tiveram coletas antes e depois do alagamento dessas áreas”, recorda Silvana.

Depósitos também são realizados a partir de materiais recebidos pelo Serviço de Referência Nacional para Esquistossomose-Malacologia, também alocado no Laboratório.

“Em casos de surtos de parasitoses em que os moluscos são os hospedeiros intermediários, o Ministério da Saúde solicita que o Serviço investigue a incidência desses animais, ou se estão infectados. Muitos espécimes que coletamos, ou recebemos, são depositados na Coleção”, acrescenta Suzete.

Também são recebidos exemplares de moluscos terrestres que agem como pragas agrícolas e urbanas. O caramujo africano é um exemplo de destaque, sendo uma das espécies terrestres mais reconhecidas atualmente por aparecer em quintais, praças, jardins e terrenos baldios. A espécie apresenta risco para a saúde por ser um potencial transmissor da meningite eosinofílica.

Equipe da Coleção de Moluscos do IOC. Foto: Gutemberg Brito
 

Preservação

Uma das preocupações centrais para as curadoras é a atualização de técnicas de preservação do acervo.

“Temos muitos espécimes tipos, que são aqueles usados na descrição de novas espécies. Além disso, acompanhamos de perto como muitos desses exemplares foram coletados através de esforços consideráveis em expedições. Todo esse investimento humano e financeiro para o estudo de moluscos não pode ser desperdiçado e, por isso, reforçamos a importância de termos uma estrutura sólida para preservar esse material para estudos atuais e das futuras gerações”, destaca Suzete.

Atualmente, o acervo é dividido em duas salas, de acordo com as especificidades dos exemplares. Na sala seca, mantida em temperatura ambiente, são acondicionadas as conchas dos moluscos em sacos plásticos ou frascos de vidro.

Na sala úmida, com temperatura controlada, são preservados os corpos desses animais em potes de vidro contendo solução de Railliet-Henry ou álcool a 70%. Em ambos os ambientes, os exemplares estão em armários de aço deslizantes.

“A separação das salas realizada na década passada foi um avanço muito importante para a Coleção, pois a solução de Railliet-Henry, que tem formol e ácido acético na sua composição, exala vapores que podem corroer as conchas ao longo do tempo”, explica Silvana.

Exemplares históricos de conchas de moluscos que foram coletados em Aimorés, em Minas Gerais, e em Michigan, nos Estados Unidos. Foto: Gutemberg Brito

Outro avanço técnico foi a atualização na preservação dos corpos moles: para os novos depósitos, ao invés da solução de Railliet-Henry, o álcool tem sido o escolhido, tendo em vista as novas tecnologias e a possibilidade de realização de sequenciamento genético.

“A solução de Railliet-Henry preserva muito bem o corpo do animal para análises morfológicas, mas degrada o DNA. Com o advento das técnicas moleculares, preservar o material genético desses exemplares tornou-se essencial para novas descobertas”, revela Silvana.

Apesar das técnicas moleculares serem recentes, a preocupação com a genética desses animais vem desde a época de Lobato Paraense. No Laboratório, o pesquisador mantinha alguns exemplares de moluscos vivos para realizar cruzamento entre espécimes pigmentados e albinos. A técnica foi elogiada pelo biólogo e geneticista Theodosius Dobzhansky, cujo trabalho teve grande influência para o estabelecimento da síntese evolutiva moderna.

“Dr. Lobato sempre contava que foi elogiado por Dobzhansky durante uma visita do pesquisador ao Brasil, que teria achado muito interessante o uso do caráter de albinismo para cruzamentos. Como esses animais não deveria dar descendentes férteis, Dr. Lobato usava esse conceito para confirmar se eram, de fato, albinos ou se pertenciam a uma nova espécie”, explica Silvana.

“Dr. Lobato era muito inteligente e dedicado. Embora não tenha trabalhado com biologia molecular, pois já estava bem idoso e faleceu antes da difusão da tecnologia, ele chegou a publicar um trabalho destacando a importância dessa tecnologia como um instrumento para resolver os ‘complexos de espécies’, que são espécies com características muito próximas, sem uma demarcação exata entre elas”, completa.

A Coleção também faz sequenciamento genético de alguns exemplares de interesse. Recentemente, recebeu apoio institucional para adquirir um novo ultra congelador, visando a preservação de mais exemplares.

“A melhor forma de preservação é o congelamento, pois preserva melhor o DNA a longo prazo e não prejudica tanto o corpo do animal para estudos morfológicos. Como ainda não é uma prática que não ocorre de forma sistemática, iremos preservar alguns exemplares de interesse que ajudarão a compreender melhor esses organismos”, explica Suzete.

Era digital

Como parte das recentes ações de modernização, foi adquirido um equipamento de digitalização que tem contribuído para o enriquecimento da base de dados sobre a biodiversidade presente na coleção e ampliado o acesso dos espécimes pela internet.

“Contamos com um microscópio tridimensional que nos permite digitalizar os espécimes, graças ao trabalho do projeto ‘Preservo’, liderado no IOC pelo pesquisador Marcelo Pelajo. Com ele, podemos criar imagens em alta resolução de exemplares do acervo”, celebra Silvana.

O equipamento tem perfil multiusuário, possibilitando que outras Coleções e Laboratórios utilizem-no para gerar imagens de seus próprios exemplares.

O microscópio tridimensional captura imagens de moluscos em volume tridimensional a partir de um sistema robotizado de alta precisão, câmera digital integrada e conectividade com computador. Foto: Gutemberg Brito

De acordo com as curadoras, a disponibilização de imagens digitais de alta qualidade tem ampliado o acesso dos espécimes por outros pesquisadores, facilitando estudos e pesquisas, além de reduzir riscos de danos associados à manipulação de exemplares raros.

“Já digitalizamos todos os materiais tipo, aqueles que foram usados na descrição das espécies. Agora estamos seguindo conforme as demandas, seja pelo estado do material ou por projetos de pesquisa”, relata Suzete.

Desde 2012, a base de dados da Coleção também está disponível para consultas online, com acesso aberto ao público, através da plataforma SpeciesLink.

“Somos parte de uma grande comunidade global, e as informações disponibilizadas aqui têm o potencial de gerar conhecimentos que impactam o mundo”, afirma Silvana.

Rede de colaboração

Por desempenhar um trabalho de referência para estudos taxonômicos, sistemáticos, ecológicos e parasitológicos de moluscos, a Coleção possui notório reconhecimento no cenário científico nacional e internacional.

Nos últimos anos, a Coleção tem colaborado para a recuperação da Coleção de Mollusca do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, acometida pelo devastador incêndio de 2018, que destruiu o espaço físico da instituição.

“Temos exemplares semelhantes aos que eram preservados lá. Por isso, a equipe tem nos procurado para realizar consultas”, conta Suzete.

“Nossos alunos também têm separado materiais recém coletados para depositar na Coleção do Museu Nacional. Além disso, temos feito doações regulares de exemplares dos nossos lotes mais substanciais para ajudar na reconstrução desse histórico museu”, completa Silvana.

Uma das mais antigas e representativas coleções biológicas do Brasil, a Coleção de Mollusca do Museu Nacional possuía cerca de 40 mil lotes de moluscos marinhos, terrestres e de água doce do Brasil e do exterior.

Uma homenagem aos pioneiros

O acervo da Coleção de Moluscos do IOC está localizado no campus da Fiocruz, no Rio de Janeiro, mais especificamente no Pavilhão Adolpho Lutz. A escolha desse nome para o edifício não foi por acaso, sendo uma homenagem de Wladimir Lobato Paraense ao icônico pesquisador da Fiocruz.

“Dr. Lobato tinha uma grande devoção por Adolpho Lutz, que foi um pesquisador fantástico. Podemos dizer que ele era um ‘fã de carteirinha’. Quando houve a nomeação dos edifícios do IOC, o Dr. Lobato estava determinado a prestar essa homenagem à Lutz”, revela Silvana.

Adolpho Lutz teve uma grande contribuição à zoologia médica no Brasil, que incluía suas pesquisas sobre o Schistosoma mansoni e os moluscos responsáveis pela propagação da esquistossomose.

Serviços

A Coleção recebe amostras de moluscos límnicos e terrestres de várias regiões para identificação morfológica e molecular. Oferece a consulta e empréstimo de exemplares do acervo para pesquisadores e estudantes.

Outra possibilidade é o depósito de material biológico utilizado para a elaboração de teses e artigos. O acervo tem servido de fonte para mais de 150 publicações do Laboratório de Malacologia do IOC, possibilitando vários estudos sobre a morfologia, taxonomia, filogenia e biogeografia destes moluscos.

Além disso, a Coleção também presta suporte a uma variedade de atividades, como a identificação de espécimes para órgãos ligados à saúde e à agricultura; e a qualificação de recursos humanos em Malacologia Médica e Sistemática para profissionais e estudantes de graduação e de pós-graduação.

A divulgação científica também é uma marca, com presença garantida em eventos como ‘Fiocruz Pra Você’ e ‘Semana Nacional de Ciência e Tecnologia’.

Silvana e Suzete seguram uma das maquetes utilizadas pela Coleção em eventos para explicar o ciclo da esquistossomose. Foto: Gutemberg Brito
Edição: 
Vinicius Ferreira

Permitida a reprodução sem fins lucrativos do texto desde que citada a fonte (Comunicação / Instituto Oswaldo Cruz)