Análises genéticas de dados dos últimos 60 anos apontam que introduções da linhagem moderna do vÃrus no Brasil a partir de paÃses vizinhos estão por trás de surtos recentes nas regiões Sudeste e Sul
Desde 2000, o Brasil teve, pelo menos, três surtos de febre amarela silvestre em que a doença alcançou áreas das regiões Sudeste e Sul que não registravam casos há décadas. Recém-publicada na revista internacional ‘Scientific ReportsÂ’, uma pesquisa realizada pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) mostra que estes episódios, relacionados a uma distribuição espacial ampliada, ocorreram após uma mudança no padrão de entrada e de espalhamento do vÃrus da febre amarela no território brasileiro. A partir da análise das sequências genéticas de vÃrus relacionados a 137 casos registrados em nove paÃses das Américas entre 1954 e 2017, os cientistas identificaram que variantes virais pertencentes a uma linhagem moderna, introduzidas no Brasil por diferentes caminhos a partir de paÃses vizinhos, estiveram por trás dos casos notificados nos últimos surtos. O trabalho é resultado de um esforço conjunto dos Laboratórios de Aids e Imunologia Molecular, de Biologia Molecular de FlavivÃrus, de Mosquitos Transmissores de Hematozoários e de Genética Molecular de Microrganismos do IOC.Gutemberg Brito
Os pesquisadores analisaram as mutações no genoma viral e construÃram uma árvore filogenética, que apontou que a linhagem moderna do vÃrus da febre amarela chegou ao Brasil por dois caminhos
Segundo os cientistas, ainda não é possÃvel determinar por que a linhagem moderna substituiu as linhagens antigas, que circularam por décadas nas Américas. “A substituição pode ter ocorrido simplesmente porque os vÃrus modernos surgiram e se disseminaram em momentos oportunos. Por outro lado, não podemos afastar a possibilidade de algum tipo de vantagem competitiva, que favoreça a disseminação”, pondera Daiana Mir, também primeira autora do artigo. Ela é estudante de doutorado no Programa de Pós-graduação em Biologia Computacional e Sistemas do IOC, sob orientação de Gonzalo.
No conjunto de 137 genomas analisados pelo estudo, dois chamam a atenção por sua singularidade: os dois isolados provenientes de macacos coletados no EspÃrito Santo em 2017, relacionados ao atual surto de febre amarela silvestre, apresentam mutações inéditas – o achado foi constatado por cientistas do IOC em estudo anterior [Clique aqui para saber mais]. Trata-se, portanto, de dois vÃrus com mutações ainda mais recentes, que se somam à s seis mutações. A compreensão sobre quando e como ocorreu a introdução dessa nova variante viral, situada no conjunto dos vÃrus da linhagem moderna, enfrenta um desafio: existem poucos genomas sequenciados dos vÃrus que circularam no paÃs nos últimos anos. “A análise dos genomas atualmente disponÃveis em bancos de dados especializados revela que esses vÃrus com mutações inéditas não derivam dos vÃrus que causaram o surto anterior no território brasileiro, entre 2008 e 2009, mas seriam resultado de uma nova introdução no paÃs a partir da Venezuela”, afirma Daiana. Ela acrescenta que há uma lacuna nos bancos de dados em relação ao perÃodo entre 2009 e 2017. “Infelizmente, os sequenciamentos genéticos geralmente são feitos apenas nos perÃodos de surto. Assim, para estabelecer como os vÃrus alcançaram a região Sudeste, será preciso analisar outros genomas referentes ao surto atual, assim como do Norte e do Centro-Oeste, que são áreas endêmicas para a febre amarela silvestre no Brasil e onde esses vÃrus podem ter circulado anteriormente à ocorrência no EspÃrito Santo”, completa. A entrada dos vÃrus pelo Norte, com disseminação posterior para o Centro-Oeste até alcançar outras regiões foi observada nos episódios anteriores ao surto iniciado em 2016. Os vÃrus da linhagem moderna que entraram no Brasil a partir de Trinidad e Tobago entre 1981 e 1989 seguiram este caminho até serem detectados no surto iniciado em 2000, quando casos do agravo ocorreram em trechos da Bahia e São Paulo, ao mesmo tempo em que Paraná e Rio Grande do Sul tiveram infecções em animais. A mesma rota foi percorrida pelos vÃrus referentes ao surto iniciado em 2008. Originada na Venezuela, a variante viral chegou à região Norte entre 1999 e 2005, espalhando-se até alcançar novas áreas no estado de São Paulo, na região Sul e, até mesmo, na Argentina. A partir dos dados disponÃveis, os pesquisadores estimam que os vÃrus relacionados ao surto atual tenham ingressado no Brasil, a partir da Venezuela, entre 2000 e 2016. Por causa do baixo número de genomas sequenciados disponÃveis, o intervalo de incerteza é quase duas vezes maior do que o estabelecido para as introduções anteriores de linhagens virais no paÃs. De acordo com os pesquisadores, além de esclarecer os caminhos percorridos pelos vÃrus envolvidos no surto atual, a decodificação de mais genomas virais em circulação deve contribuir para esclarecer a origem das mutações inéditas observadas no Brasil recentemente. Uma coisa é certa: essas mutações não estão presentes nos vÃrus venezuelanos sequenciados até o momento. Importância da vigilância
Os autores do trabalho ressaltam que a vigilância molecular – baseada na análise do genoma dos vÃrus – pode contribuir para o enfrentamento da febre amarela silvestre no Brasil. “Para esse monitoramento, não é preciso sequenciar o genoma dos vÃrus em todos os casos. Uma amostra deve ser suficiente para traçar um panorama da variedade genética do vÃrus no paÃs. Por outro lado, essa ação não pode ficar restrita aos momentos de surto. A vigilância constante é necessária para acompanhar as linhagens em circulação e nos permite compreender melhor a origem dos surtos. Esse trabalho também é fundamental para identificar mutações genéticas que podem ter impacto na atividade viral, facilitando a preparação para o enfrentamento de situações em que possa haver uma vantagem competitiva do vÃrus”, comenta Gonzalo. Reportagem: MaÃra Menezes Edição: Raquel Aguiar 18/08/2017
Análises genéticas de dados dos últimos 60 anos apontam que introduções da linhagem moderna do vÃrus no Brasil a partir de paÃses vizinhos estão por trás de surtos recentes nas regiões Sudeste e Sul
Desde 2000, o Brasil teve, pelo menos, três surtos de febre amarela silvestre em que a doença alcançou áreas das regiões Sudeste e Sul que não registravam casos há décadas. Recém-publicada na revista internacional ‘Scientific ReportsÂ’, uma pesquisa realizada pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) mostra que estes episódios, relacionados a uma distribuição espacial ampliada, ocorreram após uma mudança no padrão de entrada e de espalhamento do vÃrus da febre amarela no território brasileiro. A partir da análise das sequências genéticas de vÃrus relacionados a 137 casos registrados em nove paÃses das Américas entre 1954 e 2017, os cientistas identificaram que variantes virais pertencentes a uma linhagem moderna, introduzidas no Brasil por diferentes caminhos a partir de paÃses vizinhos, estiveram por trás dos casos notificados nos últimos surtos. O trabalho é resultado de um esforço conjunto dos Laboratórios de Aids e Imunologia Molecular, de Biologia Molecular de FlavivÃrus, de Mosquitos Transmissores de Hematozoários e de Genética Molecular de Microrganismos do IOC.
Gutemberg Brito
Os pesquisadores analisaram as mutações no genoma viral e construÃram uma árvore filogenética, que apontou que a linhagem moderna do vÃrus da febre amarela chegou ao Brasil por dois caminhos
De acordo com os cientistas, o surgimento e disseminação da linhagem moderna do vÃrus da febre amarela representa uma mudança radical no padrão de dispersão da doença no continente americano e, sobretudo, no Brasil. Os dados permitiram reconstruir as rotas de migração viral de 1946 até hoje. “Até o começo da década de 1990, o Brasil desempenhava um papel central na evolução dos vÃrus da febre amarela nas Américas: as variantes virais das linhagens antigas surgiam principalmente na região Norte brasileira e se espalhavam para outros paÃses. Porém, após o aparecimento da linhagem moderna, o Brasil passou de emissor a receptor de novos vÃrus”, ressalta Gonzalo Bello, pesquisador do Laboratório de Aids e Imunologia Molecular do IOC e coordenador do estudo. A linhagem moderna surgiu provavelmente em Trinidad e Tobago, por volta de 1977. “A linhagem moderna do vÃrus se espalhou para diversos paÃses, substituindo variantes virais das linhagens antigas, que circulavam no continente americano até então. Assim, todos os surtos e casos esporádicos ocorridos desde o fim da década de 1990 no Brasil, assim como na Venezuela e Argentina, foram causados por variantes dessa nova linhagem”, afirma Edson Delatorre, pós-doutorando do Laboratório de Aids e Imunologia Molecular do IOC e um dos primeiros autores do artigo.
Para reconstruir a dinâmica de disseminação dos vÃrus, os pesquisadores analisaram as mutações no genoma viral e construÃram uma árvore filogenética – similar a uma árvore genealógica, ela agrupa no mesmo ramo os vÃrus que compartilham um ancestral comum. O trabalho apontou que a linhagem moderna do vÃrus da febre amarela chegou ao Brasil por dois caminhos. Num primeiro momento, o vÃrus veio em uma rota sem escalas a partir de Trinidad e Tobago, no perÃodo entre 1981 e 1989. Esta primeira variante da linhagem moderna se espalhou no Brasil e foi responsável pelo surto iniciado em 2000, mas parou de circular posteriormente. Nos dois episódios seguintes, a origem dos vÃrus foi a Venezuela – paÃs que, por sua vez, havia recebido a linhagem de Trinidad e Tobago entre 1981 e 1992. Os vÃrus que chegaram a partir dessas introduções resultaram nos surtos iniciados em 2008 e 2016.
Diferenças genéticas entre as linhagens
Segundo os cientistas, ainda não é possÃvel determinar por que a linhagem moderna substituiu as linhagens antigas, que circularam por décadas nas Américas. “A substituição pode ter ocorrido simplesmente porque os vÃrus modernos surgiram e se disseminaram em momentos oportunos. Por outro lado, não podemos afastar a possibilidade de algum tipo de vantagem competitiva, que favoreça a disseminação”, pondera Daiana Mir, também primeira autora do artigo. Ela é estudante de doutorado no Programa de Pós-graduação em Biologia Computacional e Sistemas do IOC, sob orientação de Gonzalo.
Confira uma sÃntese do achado no infográfico animado abaixo (sem som):
Todos os vÃrus modernos apresentam três mutações no genoma, quando comparados aos vÃrus das linhagens antigas. No conjunto dos vÃrus modernos, aqueles ainda mais recentes, que ocorrem na Venezuela e no Brasil, contam com três modificações adicionais, totalizando um conjunto de seis mutações. Essa caracterÃstica constitui a assinatura genética dos vÃrus da linhagem moderna. “Geralmente, os vÃrus apresentam variações genéticas pontuais, que são observadas em um ou poucos casos, mas não se fixam no processo de evolução. O fato de essas seis mutações terem se fixado no genoma, indica que elas podem ter um papel importante na biologia do vÃrus”, afirma Edson. Segundo ele, algumas das alterações estão associadas a mudanças na composição de proteÃnas que podem ser significativas para a atividade viral. No entanto, novos estudos são necessários para determinar o seu impacto. “É preciso realizar testes em laboratório para avaliar o efeito da presença destas mutações no vÃrus. Dependendo do trecho do genoma afetado, uma única mutação pode ser suficiente para alterar a capacidade de infecção, transmissão ou replicação de um vÃrus”, ressalta.
Surto atual
No conjunto de 137 genomas analisados pelo estudo, dois chamam a atenção por sua singularidade: os dois isolados provenientes de macacos coletados no EspÃrito Santo em 2017, relacionados ao atual surto de febre amarela silvestre, apresentam mutações inéditas – o achado foi constatado por cientistas do IOC em estudo anterior [Clique aqui para saber mais]. Trata-se, portanto, de dois vÃrus com mutações ainda mais recentes, que se somam à s seis mutações.
A compreensão sobre quando e como ocorreu a introdução dessa nova variante viral, situada no conjunto dos vÃrus da linhagem moderna, enfrenta um desafio: existem poucos genomas sequenciados dos vÃrus que circularam no paÃs nos últimos anos. “A análise dos genomas atualmente disponÃveis em bancos de dados especializados revela que esses vÃrus com mutações inéditas não derivam dos vÃrus que causaram o surto anterior no território brasileiro, entre 2008 e 2009, mas seriam resultado de uma nova introdução no paÃs a partir da Venezuela”, afirma Daiana. Ela acrescenta que há uma lacuna nos bancos de dados em relação ao perÃodo entre 2009 e 2017. “Infelizmente, os sequenciamentos genéticos geralmente são feitos apenas nos perÃodos de surto. Assim, para estabelecer como os vÃrus alcançaram a região Sudeste, será preciso analisar outros genomas referentes ao surto atual, assim como do Norte e do Centro-Oeste, que são áreas endêmicas para a febre amarela silvestre no Brasil e onde esses vÃrus podem ter circulado anteriormente à ocorrência no EspÃrito Santo”, completa.
A entrada dos vÃrus pelo Norte, com disseminação posterior para o Centro-Oeste até alcançar outras regiões foi observada nos episódios anteriores ao surto iniciado em 2016. Os vÃrus da linhagem moderna que entraram no Brasil a partir de Trinidad e Tobago entre 1981 e 1989 seguiram este caminho até serem detectados no surto iniciado em 2000, quando casos do agravo ocorreram em trechos da Bahia e São Paulo, ao mesmo tempo em que Paraná e Rio Grande do Sul tiveram infecções em animais. A mesma rota foi percorrida pelos vÃrus referentes ao surto iniciado em 2008. Originada na Venezuela, a variante viral chegou à região Norte entre 1999 e 2005, espalhando-se até alcançar novas áreas no estado de São Paulo, na região Sul e, até mesmo, na Argentina. A partir dos dados disponÃveis, os pesquisadores estimam que os vÃrus relacionados ao surto atual tenham ingressado no Brasil, a partir da Venezuela, entre 2000 e 2016. Por causa do baixo número de genomas sequenciados disponÃveis, o intervalo de incerteza é quase duas vezes maior do que o estabelecido para as introduções anteriores de linhagens virais no paÃs.
De acordo com os pesquisadores, além de esclarecer os caminhos percorridos pelos vÃrus envolvidos no surto atual, a decodificação de mais genomas virais em circulação deve contribuir para esclarecer a origem das mutações inéditas observadas no Brasil recentemente. Uma coisa é certa: essas mutações não estão presentes nos vÃrus venezuelanos sequenciados até o momento.
Importância da vigilância
Os autores do trabalho ressaltam que a vigilância molecular – baseada na análise do genoma dos vÃrus – pode contribuir para o enfrentamento da febre amarela silvestre no Brasil. “Para esse monitoramento, não é preciso sequenciar o genoma dos vÃrus em todos os casos. Uma amostra deve ser suficiente para traçar um panorama da variedade genética do vÃrus no paÃs. Por outro lado, essa ação não pode ficar restrita aos momentos de surto. A vigilância constante é necessária para acompanhar as linhagens em circulação e nos permite compreender melhor a origem dos surtos. Esse trabalho também é fundamental para identificar mutações genéticas que podem ter impacto na atividade viral, facilitando a preparação para o enfrentamento de situações em que possa haver uma vantagem competitiva do vÃrus”, comenta Gonzalo.
Reportagem: MaÃra Menezes
Edição: Raquel Aguiar
18/08/2017
Permitida a reprodução sem fins lucrativos do texto desde que citada a fonte (Comunicação / Instituto Oswaldo Cruz)