Uma pesquisa liderada pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) demonstra que a terapia contra a hansenÃase traz benefÃcios não somente para o paciente, mas também para os familiares e demais pessoas que convivem na mesma casa.
Sem o tratamento, o bacilo causador da doença, o Mycobacterium leprae, é constantemente expelido pelas vias aéreas e pode infectar outras pessoas. Porém, logo após o inÃcio da terapia, os pacientes param de expelir o microrganismo.
Publicado na revista cientÃfica Plos Neglected Tropical Diseases, o estudo aponta que o tratamento dos pacientes contribui também para o fortalecimento da resposta imune dos familiares e demais contatos domiciliares, que pode ser enfraquecida pela atuação da bactéria.
Segundo o imunologista Geraldo Pereira, pesquisador do Laboratório de Microbiologia Celular do IOC e um dos coordenadores do trabalho, as pessoas que vivem no mesmo domicÃlio dos pacientes com hansenÃase multibacilar - na qual o número de bactérias encontradas no organismo e expelidas pelas vias aéreas é alto - apresentam elevado risco de contrair a doença. Em comparação com pessoas que vivem em áreas com transmissão do agravo, mas sem esse tipo de exposição em casa, os contatos domiciliares têm entre oito e dez vezes mais chances de adoecer.
"Mesmo assim, a hansenÃase não é uma doença altamente contagiosa. O M. leprae é uma bactéria de crescimento lento e a manifestação da doença depende, em grande parte, da interação entre o microrganismo e o sistema imune do hospedeiro. Em média, apenas 7% dos contatos domiciliares de pacientes multibacilares desenvolvem hansenÃase", explica o pesquisador.
Considerando estes fatores, o Ministério da Saúde recomenda a avaliação clÃnica dos contatos domiciliares de todos os pacientes com hansenÃase. De acordo com a pesquisadora Maria Cristina Pessolani, chefe do Laboratório de Microbiologia Celular do IOC e também coordenadora do estudo, o objetivo é identificar precocemente os indivÃduos doentes. Para aqueles que não apresentam sinais do agravo, é indicada a aplicação da vacina BCG.
"As principais medidas para reduzir o risco de adoecimento entre os contatos domiciliares são o tratamento do paciente diagnosticado e a imunização com BCG, que só não é recomendada para quem já recebeu duas doses anteriormente. Na pesquisa, investigamos de que forma essas duas medidas afetam a imunidade, que é um fator central no desenvolvimento da hansenÃase", afirma a microbiologista.
Mais conhecida pela sua aplicação na prevenção de formas graves de tuberculose em crianças, a BCG é preparada a partir do Mycobacterium bovis, uma bactéria bovina semelhante a algumas bactérias que infectam os seres humanos, incluindo o M. leprae. Pesquisas apontam que o reforço da imunização para contatos domiciliares de pacientes reduz em cerca de 50% o risco de adquirir hansenÃase.
De acordo com o estudo, o tratamento dos pacientes contribui para o fortalecimento da resposta imune dos familiares e demais contatos domiciliares. Foto: Gutemberg Brito
Para análise da imunidade, amostras de sangue de 16 contatos domiciliares de pacientes com hansenÃase multibacilar foram coletadas logo após o diagnóstico da doença em um familiar ou pessoa que habita na mesma residência.
Ao mesmo tempo em que os pacientes iniciaram o tratamento, 13 dos 16 participantes do estudo receberam o reforço da BCG.
Entre os que não foram imunizados, dois já tinham recebido duas doses da vacina anteriormente e um apresentava possÃveis sinais de adoecimento, que foi descartado durante o acompanhamento.
Pelo menos seis meses depois, novas amostras de sangue foram coletadas dos 16 voluntários. Em quase todos os casos, os testes revelaram maior frequência de células de defesa, chamadas de linfócitos T, ativas contra a bactéria da hansenÃase. Ou seja, cerca de seis meses após o inÃcio do tratamento da hansenÃase pelo paciente infectado e da vacinação com BCG para os contatos com essa indicação, a resposta imune dos participantes tinha sido fortalecida.
"Os linfócitos T atuam contra patógenos intracelulares, como a bactéria da hansenÃase, induzindo a morte das células infectadas e produzindo substâncias que ativam outras células de defesa para combater a infecção. Após entrar em contato com um microrganismo pela primeira vez, essas células adquirem um tipo de memória, que torna a reação mais rápida em contatos posteriores. A maior frequência de linfócitos T ativos contra o M. leprae observada na segunda coleta de amostras indica que a reação imunológica contra o microrganismo foi fortalecida", explica Fernanda de Carvalho, estudante de doutorado da Pós-graduação em Biologia Celular e Molecular do IOC e primeira autora do estudo.
Além da maior frequência de linfócitos T ativos contra a bactéria da hansenÃase como um todo, os cientistas identificaram um maior número dessas células capazes de reconhecer regiões de proteÃnas do microrganismo - chamadas epÃtopos - que são especÃficas do M. leprae, não sendo encontradas na composição da vacina BCG.
A pesquisa sugere também que outro tipo de célula de defesa, conhecido como monócito, passou a responder com maior intensidade contra a bactéria, liberando uma quantidade superior de substâncias inflamatórias que contribuem para destruição de patógenos intracelulares. Indicando um efeito de longo prazo, o reforço da imunidade foi detectado mesmo entre contatos cuja segunda coleta de amostras ocorreu mais de dois anos depois da primeira avaliação.
Segundo Geraldo, Fernanda e Maria Cristina, o reforço da imunidade mostrou-se duradouro: em alguns casos, a segunda coleta de amostras dos contatos domiciliares foi realizada dois anos após as intervenções iniciais e o mesmo padrão foi observado. Foto: Gutemberg Brito
O fato de que as alterações foram observadas entre os indivÃduos que não receberam a vacina BCG levou os cientistas a considerarem que, pelo menos parcialmente, a melhora da imunidade foi associada ao fim da exposição cotidiana ao M. leprae, uma vez que os pacientes diagnosticados com hansenÃase iniciaram o tratamento.
O resultado reforça a hipótese de que o contato constante com a bactéria poderia inibir a resposta imune entre os contatos domiciliares dos pacientes multibacilares.
"O sistema imunológico possui mecanismos de regulação negativa, que atuam para evitar reações exacerbadas contra moléculas inofensivas. Isso é importante, por exemplo, para impedir a ocorrência de alergias e de doenças autoimunes. No caso dos contatos domiciliares dos pacientes multibacilares, é possÃvel que a exposição contÃnua a um grande número de bactérias induza a tolerância ao M. leprae, ativando a regulação negativa e prejudicando as ações de defesa do organismo", pondera Fernanda.
A partir destes resultados, a próxima etapa da pesquisa deve avaliar a função das células responsáveis pela regulação do sistema imune, chamadas de linfócitos T reguladores, entre os contatos domiciliares de pacientes com hansenÃase multibacilar.
Segundo os cientistas, a identificação de alterações pode abrir portas para o desenvolvimento de novas terapias ou estratégias de prevenção da doença.
"As pesquisas sobre a regulação do sistema imune tiveram grande avanço nos últimos anos. Em busca de novos tratamentos contra o câncer, estão em estudo vacinas terapêuticas que têm como alvo a inibição dos linfócitos T reguladores, de forma a facilitar a reação imunológica contra as células cancerÃgenas. Caso a ação do M. leprae sobre essas células seja um fator importante para o adoecimento, o mesmo tipo de abordagem poderia ser um caminho na hansenÃase", avalia Geraldo.
Liderado pelo Laboratório de Microbiologia Celular, o estudo foi realizado em parceria com o Laboratório de HansenÃase do IOC - que mantém o Ambulatório Souza Araújo, unidade de referência no atendimento a pacientes com a doença - e com Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz).
A Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) apoiou o projeto.
Artigo: de Carvalho FM, Rodrigues LS, Duppre NC, Alvim IMP, Ribeiro-Alves M, Pinheiro RO, et al. (2017) Interruption of persistent exposure to leprosy combined or not with recent BCG vaccination enhances the response to Mycobacterium leprae specific antigens. PLoS Negl Trop Dis 11(5): e0005560.
Uma pesquisa liderada pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) demonstra que a terapia contra a hansenÃase traz benefÃcios não somente para o paciente, mas também para os familiares e demais pessoas que convivem na mesma casa.
Sem o tratamento, o bacilo causador da doença, o Mycobacterium leprae, é constantemente expelido pelas vias aéreas e pode infectar outras pessoas. Porém, logo após o inÃcio da terapia, os pacientes param de expelir o microrganismo.
Publicado na revista cientÃfica Plos Neglected Tropical Diseases, o estudo aponta que o tratamento dos pacientes contribui também para o fortalecimento da resposta imune dos familiares e demais contatos domiciliares, que pode ser enfraquecida pela atuação da bactéria.
Segundo o imunologista Geraldo Pereira, pesquisador do Laboratório de Microbiologia Celular do IOC e um dos coordenadores do trabalho, as pessoas que vivem no mesmo domicÃlio dos pacientes com hansenÃase multibacilar - na qual o número de bactérias encontradas no organismo e expelidas pelas vias aéreas é alto - apresentam elevado risco de contrair a doença. Em comparação com pessoas que vivem em áreas com transmissão do agravo, mas sem esse tipo de exposição em casa, os contatos domiciliares têm entre oito e dez vezes mais chances de adoecer.
"Mesmo assim, a hansenÃase não é uma doença altamente contagiosa. O M. leprae é uma bactéria de crescimento lento e a manifestação da doença depende, em grande parte, da interação entre o microrganismo e o sistema imune do hospedeiro. Em média, apenas 7% dos contatos domiciliares de pacientes multibacilares desenvolvem hansenÃase", explica o pesquisador.
Considerando estes fatores, o Ministério da Saúde recomenda a avaliação clÃnica dos contatos domiciliares de todos os pacientes com hansenÃase. De acordo com a pesquisadora Maria Cristina Pessolani, chefe do Laboratório de Microbiologia Celular do IOC e também coordenadora do estudo, o objetivo é identificar precocemente os indivÃduos doentes. Para aqueles que não apresentam sinais do agravo, é indicada a aplicação da vacina BCG.
"As principais medidas para reduzir o risco de adoecimento entre os contatos domiciliares são o tratamento do paciente diagnosticado e a imunização com BCG, que só não é recomendada para quem já recebeu duas doses anteriormente. Na pesquisa, investigamos de que forma essas duas medidas afetam a imunidade, que é um fator central no desenvolvimento da hansenÃase", afirma a microbiologista.
Mais conhecida pela sua aplicação na prevenção de formas graves de tuberculose em crianças, a BCG é preparada a partir do Mycobacterium bovis, uma bactéria bovina semelhante a algumas bactérias que infectam os seres humanos, incluindo o M. leprae. Pesquisas apontam que o reforço da imunização para contatos domiciliares de pacientes reduz em cerca de 50% o risco de adquirir hansenÃase.
De acordo com o estudo, o tratamento dos pacientes contribui para o fortalecimento da resposta imune dos familiares e demais contatos domiciliares. Foto: Gutemberg Brito
Para análise da imunidade, amostras de sangue de 16 contatos domiciliares de pacientes com hansenÃase multibacilar foram coletadas logo após o diagnóstico da doença em um familiar ou pessoa que habita na mesma residência.
Ao mesmo tempo em que os pacientes iniciaram o tratamento, 13 dos 16 participantes do estudo receberam o reforço da BCG.
Entre os que não foram imunizados, dois já tinham recebido duas doses da vacina anteriormente e um apresentava possÃveis sinais de adoecimento, que foi descartado durante o acompanhamento.
Pelo menos seis meses depois, novas amostras de sangue foram coletadas dos 16 voluntários. Em quase todos os casos, os testes revelaram maior frequência de células de defesa, chamadas de linfócitos T, ativas contra a bactéria da hansenÃase. Ou seja, cerca de seis meses após o inÃcio do tratamento da hansenÃase pelo paciente infectado e da vacinação com BCG para os contatos com essa indicação, a resposta imune dos participantes tinha sido fortalecida.
"Os linfócitos T atuam contra patógenos intracelulares, como a bactéria da hansenÃase, induzindo a morte das células infectadas e produzindo substâncias que ativam outras células de defesa para combater a infecção. Após entrar em contato com um microrganismo pela primeira vez, essas células adquirem um tipo de memória, que torna a reação mais rápida em contatos posteriores. A maior frequência de linfócitos T ativos contra o M. leprae observada na segunda coleta de amostras indica que a reação imunológica contra o microrganismo foi fortalecida", explica Fernanda de Carvalho, estudante de doutorado da Pós-graduação em Biologia Celular e Molecular do IOC e primeira autora do estudo.
Além da maior frequência de linfócitos T ativos contra a bactéria da hansenÃase como um todo, os cientistas identificaram um maior número dessas células capazes de reconhecer regiões de proteÃnas do microrganismo - chamadas epÃtopos - que são especÃficas do M. leprae, não sendo encontradas na composição da vacina BCG.
A pesquisa sugere também que outro tipo de célula de defesa, conhecido como monócito, passou a responder com maior intensidade contra a bactéria, liberando uma quantidade superior de substâncias inflamatórias que contribuem para destruição de patógenos intracelulares. Indicando um efeito de longo prazo, o reforço da imunidade foi detectado mesmo entre contatos cuja segunda coleta de amostras ocorreu mais de dois anos depois da primeira avaliação.
Segundo Geraldo, Fernanda e Maria Cristina, o reforço da imunidade mostrou-se duradouro: em alguns casos, a segunda coleta de amostras dos contatos domiciliares foi realizada dois anos após as intervenções iniciais e o mesmo padrão foi observado. Foto: Gutemberg Brito
O fato de que as alterações foram observadas entre os indivÃduos que não receberam a vacina BCG levou os cientistas a considerarem que, pelo menos parcialmente, a melhora da imunidade foi associada ao fim da exposição cotidiana ao M. leprae, uma vez que os pacientes diagnosticados com hansenÃase iniciaram o tratamento.
O resultado reforça a hipótese de que o contato constante com a bactéria poderia inibir a resposta imune entre os contatos domiciliares dos pacientes multibacilares.
"O sistema imunológico possui mecanismos de regulação negativa, que atuam para evitar reações exacerbadas contra moléculas inofensivas. Isso é importante, por exemplo, para impedir a ocorrência de alergias e de doenças autoimunes. No caso dos contatos domiciliares dos pacientes multibacilares, é possÃvel que a exposição contÃnua a um grande número de bactérias induza a tolerância ao M. leprae, ativando a regulação negativa e prejudicando as ações de defesa do organismo", pondera Fernanda.
A partir destes resultados, a próxima etapa da pesquisa deve avaliar a função das células responsáveis pela regulação do sistema imune, chamadas de linfócitos T reguladores, entre os contatos domiciliares de pacientes com hansenÃase multibacilar.
Segundo os cientistas, a identificação de alterações pode abrir portas para o desenvolvimento de novas terapias ou estratégias de prevenção da doença.
"As pesquisas sobre a regulação do sistema imune tiveram grande avanço nos últimos anos. Em busca de novos tratamentos contra o câncer, estão em estudo vacinas terapêuticas que têm como alvo a inibição dos linfócitos T reguladores, de forma a facilitar a reação imunológica contra as células cancerÃgenas. Caso a ação do M. leprae sobre essas células seja um fator importante para o adoecimento, o mesmo tipo de abordagem poderia ser um caminho na hansenÃase", avalia Geraldo.
Liderado pelo Laboratório de Microbiologia Celular, o estudo foi realizado em parceria com o Laboratório de HansenÃase do IOC - que mantém o Ambulatório Souza Araújo, unidade de referência no atendimento a pacientes com a doença - e com Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz).
A Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) apoiou o projeto.
Artigo: de Carvalho FM, Rodrigues LS, Duppre NC, Alvim IMP, Ribeiro-Alves M, Pinheiro RO, et al. (2017) Interruption of persistent exposure to leprosy combined or not with recent BCG vaccination enhances the response to Mycobacterium leprae specific antigens. PLoS Negl Trop Dis 11(5): e0005560.
Permitida a reprodução sem fins lucrativos do texto desde que citada a fonte (Comunicação / Instituto Oswaldo Cruz)