“Não podia descartar seres com tantas possíveis respostas para a pesquisa em saúde”. Esse pensamento foi o ponto de partida para a criação da Coleção de Trypanosoma de Mamíferos Silvestres, Domésticos e Vetores do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), em 1994, conforme conta a fundadora, a pesquisadora Ana Maria Jansen.
“Quando começamos a guardar os primeiros isolados, eu trabalhava com a Dra. Maria Deane e examinava animais infectados com Trypanosoma cruzi, protozoário que causa a doença de Chagas. No fim da pesquisa, como de costume na época, os meios de cultura com parasitos eram descontaminados e descartados. Aquilo me dava dor no coração, pois estávamos jogando fora seres que poderiam ser mantidos vivos e oferecer muitas outras respostas”, relembra Ana.
A cientista, então, passou a congelar os isolados de parasitos do gênero Trypanosoma utilizados em estudos do Laboratório de Biologia de Tripanosomatídeos do IOC, dando início à estruturação do acervo da Coleção.
Em 2024, a Coltryp, como afetuosamente é chamada, celebra 15 anos de institucionalização e 30 anos de fundação, refletindo a evolução de uma inquietação científica dentro da pesquisa em doença de Chagas e o desejo de preservar a biodiversidade para além dos estudos de sua época.
A decisão de iniciar um acervo voltado a exemplares de Trypanosoma coletados principalmente de mamíferos silvestres teve em vista a compreensão do papel que esses animais desempenham na dinâmica do ciclo de transmissão dos parasitos em diferentes paisagens dos biomas brasileiros.
“O gambá é tido na literatura como o principal reservatório do T. cruzi, mas ele nem sempre está presente nas áreas onde há casos da doença de Chagas. Por isso, investigamos a presença do gênero Trypanosoma nos mais diversos animais silvestres. Compreender a diversidade ambiental dos biomas, como ocorre a transmissão e como o parasito é mantido no ambiente pode nos permitir antecipar cenários epidemiológicos, em vez de apenas reagir às doenças”, conta Ana Maria Jansen.
Incialmente, os isolados conservados no acervo eram considerados como parte da coleção de pesquisa do próprio Laboratório. Contudo, fundamentado no seu perfil único de compartilhamento com outros grupos de pesquisa e prestação de serviços, a Coleção revelou potencial como acervo institucional.
“Nem todo laboratório tem o privilégio de fazer trabalho de campo, que é caro e burocrático. Guardar exemplares para além dos nossos trabalhos pontuais é uma forma de contribuir ainda mais com a pesquisa em saúde e gerar mais conhecimentos”, pontua a pesquisadora.
O reconhecimento da Coltryp como coleção biológica do IOC ocorreu em 2009. Desde então, a equipe atua oficialmente em colaborações com diferentes instituições na oferta de serviços, fornecimento de isolados, identificação molecular de parasitos e treinamento de recursos humanos.
Atualmente, o acervo é gerido pelas pesquisadoras Fernanda Moreira Alves — que assumiu a curadoria no segundo semestre deste ano — e Cristiane Varella Lisboa.
Além das comemorações pelas datas de institucionalização e criação, a Coleção tem ainda outro motivo para celebrar: o número de isolados de Trypanosoma ultrapassou a casa dos mil exemplares.
A atual curadora explica como funciona a complexa logística de pesquisa, do campo ao laboratório.
“São muitos gargalos até realizarmos o depósito dos exemplares. Existem muitas dificuldades burocráticas e financeiras durante o planejamento da expedição. No campo, como trabalhamos com uma grande variedade de animais silvestres, lidamos com a complexidade das diferentes formas de coleta das amostras de sangue. Também não sabemos se, quando capturado, o animal estará infectado com Trypanosoma. Se estiver, a próxima incerteza é se conseguiremos amplificar o parasito nos meios de cultura em laboratório ao ponto de ser possível isolá-lo”, compartilha Fernanda.
Ao longo de três décadas de trabalho de campo, foram analisadas mais de 30 mil amostras de sangue de animais, abrangendo oito ordens de mamíferos (como roedores, morcegos e gambás), uma ordem de serpente e uma família de insetos.
“Costumamos receber poucos depósitos externos. O crescimento da Coleção é muito ligado aos trabalhos de campo realizados pelo Laboratório de Biologia de Tripanosomatídeos, ao qual a Coleção está vinculada. Temos muitas histórias para contar sobre cada exemplar”, registra Cristiane.
Os isolados depositados na Coleção são oriundos de todos os biomas brasileiros e estão conservados por meio de criopreservação em nitrogênio líquido (-196ºC) com crioprotetores, garantindo sua integridade.
“A maior beleza da Coltryp é ser uma coleção viva”, destaca Cristiane.
Com exemplares de décadas passadas congelados, a Coltryp tem contribuído na geração de conhecimento dos principais aspectos que possam interferir na interação de espécies de Trypanosoma com seus hospedeiros.
Dentre as descobertas de destaque, está a descrição da nova espécie Trypanosoma janseni (nomeado em homenagem à Ana Maria Jansen), feita pelo Laboratório de Biologia de Tripanosomatídeos do IOC em 2018, a partir de isolados depositados na Coleção.
“Com a tecnologia atual, como sequenciamento genético, podemos analisar parasitos coletados há muito tempo e ter respostas que não seriam possíveis no passado. Imagina as novas respostas que surgirão a partir das tecnologias que não existem hoje e ainda estão por vir? Isso é fascinante”, ressalta Cristiane.
A curadora adjunta frisa, ainda, a rigorosidade da Coltryp com os dados associados aos isolados, armazenados online no Sistema de Informação de Coleções de Interesse Biotecnológico (SICol) e fisicamente em fichas na biblioteca da Coleção.
“O critério para uma espécie se tornar um exemplar da Coleção é possuir rastreabilidade. Por isso, temos um acervo paralelo, que reúne exemplares que não atendem aos critérios mínimos para entrarem na Coltryp, mas que não descartaríamos pelas possibilidades de pesquisa. Eles são mantidos com a mesma qualidade da Coleção”, pontua.
A rastreabilidade da Coltryp também permite que o grupo faça recortes temporais e compreenda melhor as interações ecológicas que têm moldado a transmissão da doença de Chagas em paisagens de biomas brasileiros.
“Quando revisitamos alguns locais de coleta, conseguimos notar quando há mudança na prevalência de hospedeiros ou nos parasitos em circulação. É importantíssimo ter esses registros na linha do tempo”, apontou.
Fundada a partir de uma inquietação científica e da busca por respostas, a paixão pela dúvida que orientava a criadora, segue como inspiração para as atuais curadoras da Coleção.
“É muito bonito o que a gente consegue descobrir aqui na Coleção, mas é ainda mais bonito o que a gente não sabe. Estamos guardando exemplares não só para registro de biodiversidade, mas para as pesquisas que serão realizadas com a tecnologia do futuro. Espero deixar uma herança para os futuros pesquisadores, assim como a Dra. Ana nos deixou esse acervo”, destaca Fernanda.
“É muito inspirador perceber que a Coleção sempre nos fornecerá informações. A cada novo depósito ou, até mesmo, quando nós revisitamos depósitos antigos, temos novas respostas. Por isso, precisamos dar mais visibilidade para a Coltryp, para encontrarmos mais colaboradores e, também, inspirar futuros cientistas”, acrescenta Cristiane.
“O que espero de quem esteja na curadoria da Coltryp é a ausência do medo da dúvida. Não tenha pressa de colocar fatos em caixinhas. Conviva bastante com a dúvida. Pega esse ‘não sei’ e fica com ele. Pacificar-se com uma ‘pseudo-certeza’ é paralisante. A ciência pode ser tudo, menos parada”, conclui Ana Jansen.
“Não podia descartar seres com tantas possíveis respostas para a pesquisa em saúde”. Esse pensamento foi o ponto de partida para a criação da Coleção de Trypanosoma de Mamíferos Silvestres, Domésticos e Vetores do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), em 1994, conforme conta a fundadora, a pesquisadora Ana Maria Jansen.
“Quando começamos a guardar os primeiros isolados, eu trabalhava com a Dra. Maria Deane e examinava animais infectados com Trypanosoma cruzi, protozoário que causa a doença de Chagas. No fim da pesquisa, como de costume na época, os meios de cultura com parasitos eram descontaminados e descartados. Aquilo me dava dor no coração, pois estávamos jogando fora seres que poderiam ser mantidos vivos e oferecer muitas outras respostas”, relembra Ana.
A cientista, então, passou a congelar os isolados de parasitos do gênero Trypanosoma utilizados em estudos do Laboratório de Biologia de Tripanosomatídeos do IOC, dando início à estruturação do acervo da Coleção.
Em 2024, a Coltryp, como afetuosamente é chamada, celebra 15 anos de institucionalização e 30 anos de fundação, refletindo a evolução de uma inquietação científica dentro da pesquisa em doença de Chagas e o desejo de preservar a biodiversidade para além dos estudos de sua época.
A decisão de iniciar um acervo voltado a exemplares de Trypanosoma coletados principalmente de mamíferos silvestres teve em vista a compreensão do papel que esses animais desempenham na dinâmica do ciclo de transmissão dos parasitos em diferentes paisagens dos biomas brasileiros.
“O gambá é tido na literatura como o principal reservatório do T. cruzi, mas ele nem sempre está presente nas áreas onde há casos da doença de Chagas. Por isso, investigamos a presença do gênero Trypanosoma nos mais diversos animais silvestres. Compreender a diversidade ambiental dos biomas, como ocorre a transmissão e como o parasito é mantido no ambiente pode nos permitir antecipar cenários epidemiológicos, em vez de apenas reagir às doenças”, conta Ana Maria Jansen.
Incialmente, os isolados conservados no acervo eram considerados como parte da coleção de pesquisa do próprio Laboratório. Contudo, fundamentado no seu perfil único de compartilhamento com outros grupos de pesquisa e prestação de serviços, a Coleção revelou potencial como acervo institucional.
“Nem todo laboratório tem o privilégio de fazer trabalho de campo, que é caro e burocrático. Guardar exemplares para além dos nossos trabalhos pontuais é uma forma de contribuir ainda mais com a pesquisa em saúde e gerar mais conhecimentos”, pontua a pesquisadora.
O reconhecimento da Coltryp como coleção biológica do IOC ocorreu em 2009. Desde então, a equipe atua oficialmente em colaborações com diferentes instituições na oferta de serviços, fornecimento de isolados, identificação molecular de parasitos e treinamento de recursos humanos.
Atualmente, o acervo é gerido pelas pesquisadoras Fernanda Moreira Alves — que assumiu a curadoria no segundo semestre deste ano — e Cristiane Varella Lisboa.
Além das comemorações pelas datas de institucionalização e criação, a Coleção tem ainda outro motivo para celebrar: o número de isolados de Trypanosoma ultrapassou a casa dos mil exemplares.
A atual curadora explica como funciona a complexa logística de pesquisa, do campo ao laboratório.
“São muitos gargalos até realizarmos o depósito dos exemplares. Existem muitas dificuldades burocráticas e financeiras durante o planejamento da expedição. No campo, como trabalhamos com uma grande variedade de animais silvestres, lidamos com a complexidade das diferentes formas de coleta das amostras de sangue. Também não sabemos se, quando capturado, o animal estará infectado com Trypanosoma. Se estiver, a próxima incerteza é se conseguiremos amplificar o parasito nos meios de cultura em laboratório ao ponto de ser possível isolá-lo”, compartilha Fernanda.
Ao longo de três décadas de trabalho de campo, foram analisadas mais de 30 mil amostras de sangue de animais, abrangendo oito ordens de mamíferos (como roedores, morcegos e gambás), uma ordem de serpente e uma família de insetos.
“Costumamos receber poucos depósitos externos. O crescimento da Coleção é muito ligado aos trabalhos de campo realizados pelo Laboratório de Biologia de Tripanosomatídeos, ao qual a Coleção está vinculada. Temos muitas histórias para contar sobre cada exemplar”, registra Cristiane.
Os isolados depositados na Coleção são oriundos de todos os biomas brasileiros e estão conservados por meio de criopreservação em nitrogênio líquido (-196ºC) com crioprotetores, garantindo sua integridade.
“A maior beleza da Coltryp é ser uma coleção viva”, destaca Cristiane.
Com exemplares de décadas passadas congelados, a Coltryp tem contribuído na geração de conhecimento dos principais aspectos que possam interferir na interação de espécies de Trypanosoma com seus hospedeiros.
Dentre as descobertas de destaque, está a descrição da nova espécie Trypanosoma janseni (nomeado em homenagem à Ana Maria Jansen), feita pelo Laboratório de Biologia de Tripanosomatídeos do IOC em 2018, a partir de isolados depositados na Coleção.
“Com a tecnologia atual, como sequenciamento genético, podemos analisar parasitos coletados há muito tempo e ter respostas que não seriam possíveis no passado. Imagina as novas respostas que surgirão a partir das tecnologias que não existem hoje e ainda estão por vir? Isso é fascinante”, ressalta Cristiane.
A curadora adjunta frisa, ainda, a rigorosidade da Coltryp com os dados associados aos isolados, armazenados online no Sistema de Informação de Coleções de Interesse Biotecnológico (SICol) e fisicamente em fichas na biblioteca da Coleção.
“O critério para uma espécie se tornar um exemplar da Coleção é possuir rastreabilidade. Por isso, temos um acervo paralelo, que reúne exemplares que não atendem aos critérios mínimos para entrarem na Coltryp, mas que não descartaríamos pelas possibilidades de pesquisa. Eles são mantidos com a mesma qualidade da Coleção”, pontua.
A rastreabilidade da Coltryp também permite que o grupo faça recortes temporais e compreenda melhor as interações ecológicas que têm moldado a transmissão da doença de Chagas em paisagens de biomas brasileiros.
“Quando revisitamos alguns locais de coleta, conseguimos notar quando há mudança na prevalência de hospedeiros ou nos parasitos em circulação. É importantíssimo ter esses registros na linha do tempo”, apontou.
Fundada a partir de uma inquietação científica e da busca por respostas, a paixão pela dúvida que orientava a criadora, segue como inspiração para as atuais curadoras da Coleção.
“É muito bonito o que a gente consegue descobrir aqui na Coleção, mas é ainda mais bonito o que a gente não sabe. Estamos guardando exemplares não só para registro de biodiversidade, mas para as pesquisas que serão realizadas com a tecnologia do futuro. Espero deixar uma herança para os futuros pesquisadores, assim como a Dra. Ana nos deixou esse acervo”, destaca Fernanda.
“É muito inspirador perceber que a Coleção sempre nos fornecerá informações. A cada novo depósito ou, até mesmo, quando nós revisitamos depósitos antigos, temos novas respostas. Por isso, precisamos dar mais visibilidade para a Coltryp, para encontrarmos mais colaboradores e, também, inspirar futuros cientistas”, acrescenta Cristiane.
“O que espero de quem esteja na curadoria da Coltryp é a ausência do medo da dúvida. Não tenha pressa de colocar fatos em caixinhas. Conviva bastante com a dúvida. Pega esse ‘não sei’ e fica com ele. Pacificar-se com uma ‘pseudo-certeza’ é paralisante. A ciência pode ser tudo, menos parada”, conclui Ana Jansen.
Permitida a reprodução sem fins lucrativos do texto desde que citada a fonte (Comunicação / Instituto Oswaldo Cruz)