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Sinal verde para primeiro teste com vacina da hanseníase no Brasil

Anvisa autorizou ensaio com imunizante, que tem potencial preventivo e terapêutico. Podem participar pessoas entre 18 e 55 anos que nunca tiveram a doença
Por Maíra Menezes14/10/2024 - Atualizado em 23/10/2024

Uma vacina inédita para hanseníase será testada no Brasil pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz). Chamada de LepVax, a vacina será a primeira para a doença avaliada no país durante testes clínicos. A autorização para o começo dos testes foi concedida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) nesta segunda-feira, 14 de outubro.

IOC vai liderar o primeiro teste clínico de uma vacina para hanseníase no Brasil. Foto: Gutemberg Brito

O Instituto foi escolhido como centro clínico responsável pelos testes por sua larga contribuição científica nos estudos de hanseníase. O Laboratório de Hanseníase do IOC atua na pesquisa e no atendimento a pacientes no âmbito do Serviço de Referência Nacional em Hanseníase junto ao Ministério da Saúde. Com alta capacidade para realizar estudos clínicos, o Laboratório conta com equipe multiprofissional e estrutura para análises imunológicas e moleculares.  

O Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz) é o patrocinador do ensaio clínico. O projeto da LepVax é financiado pela entidade filantrópica American Leprosy Missions (ALM), dos Estados Unidos, que lidera o desenvolvimento da vacina desde 2002. 

O estudo no Brasil também tem financiamento do Ministério da Saúde e do fundo japonês ‘Global Health Innovative Technology Fund’ (GHIT Fund). A Fundação de Saúde Sasakawa, do Japão, é parceira da pesquisa. 

Se os resultados dos estudos forem positivos, a vacina para hanseníase poderá, futuramente, fazer parte do calendário nacional de imunizações. O Brasil é o segundo país com maior número de casos da doença no mundo, atrás apenas da Índia. Em dez anos, de 2014 a 2023, foram quase 245 mil novas infecções, segundo o Ministério da Saúde. Apenas em 2023, foram 22.773 novos casos. 

Cercada por preconceito, a hanseníase é uma doença negligenciada, que pode provocar lesões graves na pele e nos nervos. Com tratamento disponível no Sistema Único de Saúde (SUS), a doença tem cura. Porém, muitos casos são identificados com atraso, quando já existem danos que prejudicam a qualidade de vida e a capacidade de trabalho dos pacientes. 

Sala de vacinação inaugurada recentemente no Ambulatório Souza Araújo será palco da pesquisa. Foto: Gutemberg Brito

A chefe substituta do Laboratório de Hanseníase do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e líder científica do ensaio clínico da LepVax, Verônica Schmitz, considera histórica a realização do estudo no país.  

“O Brasil concentra 90% dos casos de hanseníase das Américas. A cada quatro minutos, é registrado um novo caso de hanseníase no mundo. A OMS já apontou que precisamos de novas ferramentas para controle da hanseníase e as pessoas afetadas pela hanseníase merecem uma vacina”, afirma a imunologista. 

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a infecção ocorre em 120 países, com cerca de 200 mil novos casos a cada ano. O agravo atinge principalmente populações em vulnerabilidade e recebe poucos investimentos. 

Embora seja uma das doenças mais antigas do mundo, com relatos de casos há mais de quatro mil anos, até hoje não existe uma vacina. A imunização com a vacina BCG é indicada para prevenir a infecção em pessoas de maior risco, mas a proteção é parcial. 

"A eliminação sustentada da hanseníase enquanto problema de saúde pública requer uma vacina. Neste cenário, a LepVax surge como uma vacina profilática e terapêutica, que poderá contribuir para as metas de controle da doença", avalia a chefe do Laboratório de Hanseníase do IOC, Roberta Olmo.

Parte da equipe que atuará na pesquisa ao lado da líder científica do estudo, Verônica Schmitz (ao centro, de preto), e do líder médico, Cássio Ferreira (à esquerda, de camisa azul). Foto: Gutemberg Brito


Primeira vacina específica 

A LepVax foi desenvolvida pelo Access to Advanced Health Institute (AAHI), instituto americano de pesquisa biotecnológica, sem fins lucrativos.   

Trata-se da primeira vacina específica contra a bactéria Mycobacterium leprae, causadora da hanseníase. A formulação foi desenvolvida com uma das tecnologias mais modernas para a produção de imunizantes, chamada de subunidade proteica. 

Testes pré-clínicos tiveram resultados promissores. Em camundongos vacinados com LepVax, a taxa de infecção foi significativamente reduzida, mesmo diante da exposição a grande quantidade de bactérias. Quando a vacina foi administrada após a infecção, o dano no nervo motor e sensorial foi retardado em tatus, que são considerados como modelo para estudos da forma neurológica da hanseníase. Esses resultados sinalizaram o potencial para uso da vacina na prevenção e no tratamento da doença. 

A primeira etapa do ensaio com seres humanos, chamada de fase 1a, foi realizada nos Estados Unidos, com imunização de 24 voluntários sadios. O estudo demonstrou segurança da vacina, sem nenhum registro de evento adverso grave. Também apontou imunogenicidade, ou seja, capacidade de estimular a resposta imunológica.  

Ensaio no Brasil 

O teste no Brasil será o primeiro da LepVax em um território com transmissão da hanseníase. Classificado como um ensaio clínico de fase 1b, o estudo terá o objetivo de confirmar a segurança e a imunogenicidade da vacina.  

Segundo Verônica, essa avaliação é importante porque, considerando o cenário epidemiológico do país, possivelmente o sistema imunológico de grande parte dos brasileiros teve contato anterior com micobactérias, o que pode influenciar na resposta à vacina. O cenário é o mesmo nos demais países endêmicos para hanseníase, onde o imunizante poderá ser adotado. 

“No Brasil, mesmo as pessoas que nunca tiveram hanseníase podem ter entrado em contato com a M. leprae e temos circulação de outras micobactérias, como a causadora da tuberculose. Os brasileiros também são vacinados com BCG ao nascer. É uma realidade diferente dos Estados Unidos, onde não existe transmissão do agravo”, explica a imunologista. 

Resposta imune dos voluntários será analisada pelo Laboratório de Hansneíase do IOC. Foto: Gutemberg Brito

O estudo terá participação de 54 voluntários sadios. Além de avaliar a segurança e a imunogenicidade da vacina, a pesquisa vai investigar a segurança em duas formulações da vacina, com baixa e alta dose de antígeno. 

Para isso, os participantes serão divididos aleatoriamente em três grupos. Dois receberão a vacina, sendo um com dose baixa e outro com dose alta. O terceiro grupo receberá o placebo – uma solução salina, que não causa efeito biológico. 

Acompanhando os protocolos mundiais para este tipo de investigação, durante o estudo, participantes e pesquisadores não saberão em qual grupo cada indivíduo está incluído. 

“Na fase 1a, nos Estados Unidos, todos os participantes foram vacinados para avaliação inicial da segurança da vacina. Agora, na fase 1b, teremos a oportunidade de fazer um ensaio randomizado, duplo cego e controlado por placebo. É o método padrão-ouro de pesquisa, que permite comparar os grupos vacinados com o grupo controle”, pontua Verônica. 

Independentemente da dosagem baixa ou alta, a vacinação será realizada em três aplicações, com intervalo de 28 dias entre elas, assim como ocorreu no teste americano. Depois disso, os participantes serão acompanhados por um ano, totalizando 421 dias de ensaio clínico. 

Recrutamento de voluntários  

Com a autorização da Anvisa, será iniciada a importação da vacina dos Estados Unidos para o Brasil. O estudo já foi aprovado pelo Comitê Ética em Pesquisa com Seres Humanos do IOC (CEP Fiocruz/IOC). O recrutamento dos voluntários para início dos testes será realizado após aprovação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). 

Importação da vacina e recrutamento de voluntários serão iniciados após autorização da Anvisa. Foto: Gutemberg Brito 

Para participar, é preciso ter entre 18 e 55 anos e boas condições de saúde. Nessa etapa do estudo, os voluntários não podem ser pessoas que já tiveram a doença ou com contato próximo com pacientes com hanseníase. A imunização experimental também não pode ser aplicada em grávidas. 

A participação na pesquisa terá duração aproximada de 14 meses. Nesse período, os voluntários deverão comparecer a onze consultas, sendo três para aplicação da vacina e as demais para acompanhamento. Durante as visitas, os participantes passarão por avaliação clínica e exames de sangue e urina.  

Seguindo as determinações legais, os voluntários não poderão ser remunerados pela participação na pesquisa. Está previsto o ressarcimento por custos como deslocamentos e alimentação. Os participantes também terão assistência médica, com contato por telefone disponível 24 horas, caso necessitem de atendimento relacionado à imunização. 

A vacinação e o acompanhamento dos participantes serão realizados no Ambulatório Souza Araújo, mantido pelo Laboratório de Hanseníase do IOC, no campus da Fiocruz, em Manguinhos, Zona Norte do Rio de Janeiro (Av. Brasil, 4.365).  

Além de contar com equipe especializada, a unidade é certificada pela Organização Nacional de Acreditação (ONA), que atesta aplicação de diretrizes e políticas organizacionais para um atendimento seguro e de qualidade. Uma sala de vacinação recém-inaugurada no espaço será utilizada durante a pesquisa. 

Interessados em participar do estudo podem entrar em contato pelo email vacina.lepvax@ioc.fiocruz.br ou pelo telefone/WhatsApp (21) 93618-5232

Avaliação dos resultados 

Líder médico do estudo, o dermatologista e pesquisador do Ambulatório Souza Araújo, Cássio Ferreira, explica que a segurança da vacina será avaliada através do acompanhamento clínico e exames laboratoriais. 

“Nos Estados Unidos, o resultado foi muito positivo, sem nenhum evento adverso de maior gravidade. As reações registradas, como dor no local da injeção, cansaço e dor de cabeça, são comuns em imunizações. Essa primeira demonstração de segurança foi fundamental para a pesquisa avançar para a fase 1b no Brasil”, destacou Cássio. 

Sala de pesquisa clínica foi preparada para realização das análises sobre a vacina. Foto: Gutemberg Brito

As amostras de sangue coletadas também servirão para analisar a resposta imunológica desencadeada pela vacina. Essas análises serão realizadas no Laboratório de Hanseníase do IOC, que preparou uma sala de pesquisa clínica para a execução dos testes. 

Para garantir a qualidade dos resultados, os equipamentos que serão utilizados para as análises foram certificados por empresas especializadas. Os procedimentos foram validados a partir de amostras do ensaio clínico realizado nos Estados Unidos. A equipe segue procedimentos de boas práticas laboratoriais, que são exigidos pela Anvisa. 

Para análise da imunogenicidade da vacina, os pesquisadores vão dosar a quantidade de anticorpos presente no soro dos voluntários (parte líquida do sangue sem as moléculas de coagulação). Também vão investigar a ativação das células de defesa, especialmente das chamadas células T. 

“Na hanseníase, as células T são mais importantes do que os anticorpos para controlar o crescimento da bactéria. Por isso, o fator que vai sinalizar, de forma preliminar, para o potencial de proteção da vacina – chamado de correlato de proteção – será a dosagem de moléculas produzidas pelas células T ativas”, detalha a imunologista.

Amostras do ensaio clínico realizado nos Estados Unidos foram utilizadas para validar procedimentos. Foto: Gutemberg Brito

O estudo conta com um comitê independente de acompanhamento, que tem participação de especialistas sem ligação com a Fiocruz. 

Se o teste de fase 1b confirmar o bom desempenho da LepVax, os pesquisadores já planejam a próxima etapa da pesquisa, que também será realizada pela Fiocruz no Brasil.  

No ensaio clínico de fase 2a, a previsão é vacinar 582 pacientes com hanseníase para avaliar a segurança da imunização em indivíduos infectados pelo M. leprae e a ação terapêutica do imunizante. 

“O pedido de autorização para a fase 2a do estudo será submetido à Anvisa após a conclusão das primeiras análises de segurança da vacina no ensaio 1b. Os dados serão avaliados pelo comitê independente de monitoramento do estudo e, depois, enviados à agência reguladora”, diz Verônica. 

Histórico de contribuições 

O Laboratório de Hanseníase do IOC tem um histórico de ações relevantes para o enfrentamento da doença. A unidade foi pioneira na administração da poliquimioterapia no Brasil. Também foi a primeira a adotar o tratamento com 12 doses, tendo realizado estudos que contribuíram para a recomendação desse esquema, atualmente preconizado pela OMS. 

“A realização do ensaio clínico da LepVax em nosso centro reflete bem o grau de maturidade alcançado ao longo de todos esses anos, que permite que hoje tenhamos o reconhecimento da comunidade científica nacional e internacional. É também reflexo do nosso compromisso com políticas voltadas para a qualidade da assistência, atestadas na certificação do Ambulatório Souza Araújo”, ressalta Roberta. 

Uma das contribuições mais recentes do grupo foi o desenvolvimento do kit de diagnóstico NAT-HANS, baseado na detecção do DNA do M. leprae. O produto foi adotado no Sistema Único de Saúde (SUS) e começou a ser distribuído para os Laboratórios Centrais de Saúde Pública (Lacens) no ano passado. 

A inovação foi desenvolvida pelo Laboratório do IOC em parceria com o Instituto Carlos Chagas (Fiocruz-PR) e o Instituto de Biologia Molecular do Paraná (IBMP). 

A liderança do desenvolvimento do Kit NAT-HANS foi do pesquisador Milton Osório Moraes, ex-chefe do Laboratório de Hanseníase, que faleceu em 2022.

O estudo da LepVax no Brasil também era um dos projetos do cientista. Reconhecido internacionalmente como referência na pesquisa em hanseníase, ele foi procurado pelos desenvolvedores da vacina para realizar o ensaio clínico do produto.  

Entre 2019 e 2022, Milton participou da organização da pesquisa no Brasil e da submissão do pedido de autorização à Anvisa.  

“Nesse período, Milton foi diagnosticado com câncer e tivemos a pandemia da Covid-19. Mesmo assim, ele seguiu o projeto da vacina. Sua morte foi uma grande perda para nós e para a ciência, mas ele nos preparou para levar essa pesquisa adiante”, ressalta Verônica. 

Sobre a hanseníase 

A hanseníase atinge a pele e os nervos. A doença costuma provocar inicialmente manchas ou caroços na pele, com alterações de sensibilidade.  

Sem tratamento, a lesão neurológica pode avançar, prejudicando a capacidade de movimento, principalmente nas mãos e nos pés, o que afeta a qualidade de vida e a capacidade de trabalho dos pacientes. As lesões também podem atingir a face, reforçando o estigma, que é mais um dos grandes males do agravo. 

A vacina BCG, produzida com uma versão atenuada da bactéria Mycobacterium bovis, oferece proteção parcial contra a hanseníase e a tuberculose. A OMS recomenda a imunização ao nascer em países com alta carga dessas doenças, como ocorre no Brasil. 

Desde 1981, o tratamento da hanseníase é baseado em uma combinação de antibióticos. A chamada poliquimioterapia cura a infecção e mudou o panorama da doença. Globalmente, os registros caíram 95%. 

Porém, nos últimos anos, especialistas têm chamado atenção para a estagnação na luta contra o agravo. A hanseníase continua provocando novos casos e deformidades permanentes. 

Para mudar esse cenário, a OMS publicou, em 2021, uma nova estratégia contra o agravo, que busca interromper a transmissão da infecção até 2030.  

No Brasil, a doença ainda é considerada um problema de saúde pública, devido ao alto número de casos. 

O enfrentamento do agravo está no alvo do Comitê Interministerial para Eliminação da Tuberculose e Outras Doenças Determinadas Socialmente (CIEDS), instalado em junho.  

Liderado pelo Ministério da Saúde, o grupo conta com representantes de nove pastas para combater agravos negligenciados, muitas vezes associados à pobreza e a outros determinantes sociais. 

Para a hanseníase, as metas incluem a interrupção da transmissão em 99% dos municípios, a eliminação da doença em 75% dos municípios e a redução de 30% do número absoluto de novos casos com incapacidade física aparente no momento do diagnóstico até 2030. 

Segundo os especialistas, para combater a hanseníase, é preciso compromisso com a aplicação das estratégias disponíveis, superando o negligenciamento, e ao mesmo tempo, buscar inovações contra essa infecção tão antiga. 

“Uma vacina eficaz é uma das ferramentas capazes de acelerar o avanço em direção a um futuro sem hanseníase”, destaca Verônica. 

Cooperação internacional 

Liderado pela American Leprosy Missions (ALM), o desenvolvimento da LepVax contou com colaboração de quase 30 instituições de diversos países desde 2002. Além do IOC/Fiocruz, Bio-Manguinhos-Fiocruz e Fiotec, cooperam com o projeto: Access to Advanced Health Institute (AAHI), Aeras, Anesvad, Covance, Damien Foundation, DFnet, Effect Hope, FairMed, German Leprosy and Tuberculosis Relief Association (DAHW), Global Health Innovative Technology Fund (GHIT), H.L. Snyder Medical Foundation, ILEP Federation, Leonard Wood Memorial, Leprosy Relief - Canada, Leprosy Research Initiative, National Hansen's Disease Program, National Institute of Allergy and Infectious Diseases (NIH), P.S. and Ouida Bailey Foundation, Raoul Follereau Foundation, St. Francis Leprosy Guild, Sasakawa Health Foundation, The Leprosy Mission - International, Turing Foundation e Until No Leprosy Remains (NLR). Os doadores que mantêm a ALM também contribuíram para a pesquisa.

Anvisa autorizou ensaio com imunizante, que tem potencial preventivo e terapêutico. Podem participar pessoas entre 18 e 55 anos que nunca tiveram a doença
Por: 
maira

Uma vacina inédita para hanseníase será testada no Brasil pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz). Chamada de LepVax, a vacina será a primeira para a doença avaliada no país durante testes clínicos. A autorização para o começo dos testes foi concedida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) nesta segunda-feira, 14 de outubro.

IOC vai liderar o primeiro teste clínico de uma vacina para hanseníase no Brasil. Foto: Gutemberg Brito

O Instituto foi escolhido como centro clínico responsável pelos testes por sua larga contribuição científica nos estudos de hanseníase. O Laboratório de Hanseníase do IOC atua na pesquisa e no atendimento a pacientes no âmbito do Serviço de Referência Nacional em Hanseníase junto ao Ministério da Saúde. Com alta capacidade para realizar estudos clínicos, o Laboratório conta com equipe multiprofissional e estrutura para análises imunológicas e moleculares.  

O Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz) é o patrocinador do ensaio clínico. O projeto da LepVax é financiado pela entidade filantrópica American Leprosy Missions (ALM), dos Estados Unidos, que lidera o desenvolvimento da vacina desde 2002. 

O estudo no Brasil também tem financiamento do Ministério da Saúde e do fundo japonês ‘Global Health Innovative Technology Fund’ (GHIT Fund). A Fundação de Saúde Sasakawa, do Japão, é parceira da pesquisa. 

Se os resultados dos estudos forem positivos, a vacina para hanseníase poderá, futuramente, fazer parte do calendário nacional de imunizações. O Brasil é o segundo país com maior número de casos da doença no mundo, atrás apenas da Índia. Em dez anos, de 2014 a 2023, foram quase 245 mil novas infecções, segundo o Ministério da Saúde. Apenas em 2023, foram 22.773 novos casos. 

Cercada por preconceito, a hanseníase é uma doença negligenciada, que pode provocar lesões graves na pele e nos nervos. Com tratamento disponível no Sistema Único de Saúde (SUS), a doença tem cura. Porém, muitos casos são identificados com atraso, quando já existem danos que prejudicam a qualidade de vida e a capacidade de trabalho dos pacientes. 

Sala de vacinação inaugurada recentemente no Ambulatório Souza Araújo será palco da pesquisa. Foto: Gutemberg Brito

A chefe substituta do Laboratório de Hanseníase do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e líder científica do ensaio clínico da LepVax, Verônica Schmitz, considera histórica a realização do estudo no país.  

“O Brasil concentra 90% dos casos de hanseníase das Américas. A cada quatro minutos, é registrado um novo caso de hanseníase no mundo. A OMS já apontou que precisamos de novas ferramentas para controle da hanseníase e as pessoas afetadas pela hanseníase merecem uma vacina”, afirma a imunologista. 

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a infecção ocorre em 120 países, com cerca de 200 mil novos casos a cada ano. O agravo atinge principalmente populações em vulnerabilidade e recebe poucos investimentos. 

Embora seja uma das doenças mais antigas do mundo, com relatos de casos há mais de quatro mil anos, até hoje não existe uma vacina. A imunização com a vacina BCG é indicada para prevenir a infecção em pessoas de maior risco, mas a proteção é parcial. 

"A eliminação sustentada da hanseníase enquanto problema de saúde pública requer uma vacina. Neste cenário, a LepVax surge como uma vacina profilática e terapêutica, que poderá contribuir para as metas de controle da doença", avalia a chefe do Laboratório de Hanseníase do IOC, Roberta Olmo.

Parte da equipe que atuará na pesquisa ao lado da líder científica do estudo, Verônica Schmitz (ao centro, de preto), e do líder médico, Cássio Ferreira (à esquerda, de camisa azul). Foto: Gutemberg Brito

Primeira vacina específica 

A LepVax foi desenvolvida pelo Access to Advanced Health Institute (AAHI), instituto americano de pesquisa biotecnológica, sem fins lucrativos.   

Trata-se da primeira vacina específica contra a bactéria Mycobacterium leprae, causadora da hanseníase. A formulação foi desenvolvida com uma das tecnologias mais modernas para a produção de imunizantes, chamada de subunidade proteica. 

Testes pré-clínicos tiveram resultados promissores. Em camundongos vacinados com LepVax, a taxa de infecção foi significativamente reduzida, mesmo diante da exposição a grande quantidade de bactérias. Quando a vacina foi administrada após a infecção, o dano no nervo motor e sensorial foi retardado em tatus, que são considerados como modelo para estudos da forma neurológica da hanseníase. Esses resultados sinalizaram o potencial para uso da vacina na prevenção e no tratamento da doença. 

A primeira etapa do ensaio com seres humanos, chamada de fase 1a, foi realizada nos Estados Unidos, com imunização de 24 voluntários sadios. O estudo demonstrou segurança da vacina, sem nenhum registro de evento adverso grave. Também apontou imunogenicidade, ou seja, capacidade de estimular a resposta imunológica.  

Ensaio no Brasil 

O teste no Brasil será o primeiro da LepVax em um território com transmissão da hanseníase. Classificado como um ensaio clínico de fase 1b, o estudo terá o objetivo de confirmar a segurança e a imunogenicidade da vacina.  

Segundo Verônica, essa avaliação é importante porque, considerando o cenário epidemiológico do país, possivelmente o sistema imunológico de grande parte dos brasileiros teve contato anterior com micobactérias, o que pode influenciar na resposta à vacina. O cenário é o mesmo nos demais países endêmicos para hanseníase, onde o imunizante poderá ser adotado. 

“No Brasil, mesmo as pessoas que nunca tiveram hanseníase podem ter entrado em contato com a M. leprae e temos circulação de outras micobactérias, como a causadora da tuberculose. Os brasileiros também são vacinados com BCG ao nascer. É uma realidade diferente dos Estados Unidos, onde não existe transmissão do agravo”, explica a imunologista. 

Resposta imune dos voluntários será analisada pelo Laboratório de Hansneíase do IOC. Foto: Gutemberg Brito

O estudo terá participação de 54 voluntários sadios. Além de avaliar a segurança e a imunogenicidade da vacina, a pesquisa vai investigar a segurança em duas formulações da vacina, com baixa e alta dose de antígeno. 

Para isso, os participantes serão divididos aleatoriamente em três grupos. Dois receberão a vacina, sendo um com dose baixa e outro com dose alta. O terceiro grupo receberá o placebo – uma solução salina, que não causa efeito biológico. 

Acompanhando os protocolos mundiais para este tipo de investigação, durante o estudo, participantes e pesquisadores não saberão em qual grupo cada indivíduo está incluído. 

“Na fase 1a, nos Estados Unidos, todos os participantes foram vacinados para avaliação inicial da segurança da vacina. Agora, na fase 1b, teremos a oportunidade de fazer um ensaio randomizado, duplo cego e controlado por placebo. É o método padrão-ouro de pesquisa, que permite comparar os grupos vacinados com o grupo controle”, pontua Verônica. 

Independentemente da dosagem baixa ou alta, a vacinação será realizada em três aplicações, com intervalo de 28 dias entre elas, assim como ocorreu no teste americano. Depois disso, os participantes serão acompanhados por um ano, totalizando 421 dias de ensaio clínico. 

Recrutamento de voluntários  

Com a autorização da Anvisa, será iniciada a importação da vacina dos Estados Unidos para o Brasil. O estudo já foi aprovado pelo Comitê Ética em Pesquisa com Seres Humanos do IOC (CEP Fiocruz/IOC). O recrutamento dos voluntários para início dos testes será realizado após aprovação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). 

Importação da vacina e recrutamento de voluntários serão iniciados após autorização da Anvisa. Foto: Gutemberg Brito 

Para participar, é preciso ter entre 18 e 55 anos e boas condições de saúde. Nessa etapa do estudo, os voluntários não podem ser pessoas que já tiveram a doença ou com contato próximo com pacientes com hanseníase. A imunização experimental também não pode ser aplicada em grávidas. 

A participação na pesquisa terá duração aproximada de 14 meses. Nesse período, os voluntários deverão comparecer a onze consultas, sendo três para aplicação da vacina e as demais para acompanhamento. Durante as visitas, os participantes passarão por avaliação clínica e exames de sangue e urina.  

Seguindo as determinações legais, os voluntários não poderão ser remunerados pela participação na pesquisa. Está previsto o ressarcimento por custos como deslocamentos e alimentação. Os participantes também terão assistência médica, com contato por telefone disponível 24 horas, caso necessitem de atendimento relacionado à imunização. 

A vacinação e o acompanhamento dos participantes serão realizados no Ambulatório Souza Araújo, mantido pelo Laboratório de Hanseníase do IOC, no campus da Fiocruz, em Manguinhos, Zona Norte do Rio de Janeiro (Av. Brasil, 4.365).  

Além de contar com equipe especializada, a unidade é certificada pela Organização Nacional de Acreditação (ONA), que atesta aplicação de diretrizes e políticas organizacionais para um atendimento seguro e de qualidade. Uma sala de vacinação recém-inaugurada no espaço será utilizada durante a pesquisa. 

Interessados em participar do estudo podem entrar em contato pelo email vacina.lepvax@ioc.fiocruz.br ou pelo telefone/WhatsApp (21) 93618-5232

Avaliação dos resultados 

Líder médico do estudo, o dermatologista e pesquisador do Ambulatório Souza Araújo, Cássio Ferreira, explica que a segurança da vacina será avaliada através do acompanhamento clínico e exames laboratoriais. 

“Nos Estados Unidos, o resultado foi muito positivo, sem nenhum evento adverso de maior gravidade. As reações registradas, como dor no local da injeção, cansaço e dor de cabeça, são comuns em imunizações. Essa primeira demonstração de segurança foi fundamental para a pesquisa avançar para a fase 1b no Brasil”, destacou Cássio. 

Sala de pesquisa clínica foi preparada para realização das análises sobre a vacina. Foto: Gutemberg Brito

As amostras de sangue coletadas também servirão para analisar a resposta imunológica desencadeada pela vacina. Essas análises serão realizadas no Laboratório de Hanseníase do IOC, que preparou uma sala de pesquisa clínica para a execução dos testes. 

Para garantir a qualidade dos resultados, os equipamentos que serão utilizados para as análises foram certificados por empresas especializadas. Os procedimentos foram validados a partir de amostras do ensaio clínico realizado nos Estados Unidos. A equipe segue procedimentos de boas práticas laboratoriais, que são exigidos pela Anvisa. 

Para análise da imunogenicidade da vacina, os pesquisadores vão dosar a quantidade de anticorpos presente no soro dos voluntários (parte líquida do sangue sem as moléculas de coagulação). Também vão investigar a ativação das células de defesa, especialmente das chamadas células T. 

“Na hanseníase, as células T são mais importantes do que os anticorpos para controlar o crescimento da bactéria. Por isso, o fator que vai sinalizar, de forma preliminar, para o potencial de proteção da vacina – chamado de correlato de proteção – será a dosagem de moléculas produzidas pelas células T ativas”, detalha a imunologista.

Amostras do ensaio clínico realizado nos Estados Unidos foram utilizadas para validar procedimentos. Foto: Gutemberg Brito

O estudo conta com um comitê independente de acompanhamento, que tem participação de especialistas sem ligação com a Fiocruz. 

Se o teste de fase 1b confirmar o bom desempenho da LepVax, os pesquisadores já planejam a próxima etapa da pesquisa, que também será realizada pela Fiocruz no Brasil.  

No ensaio clínico de fase 2a, a previsão é vacinar 582 pacientes com hanseníase para avaliar a segurança da imunização em indivíduos infectados pelo M. leprae e a ação terapêutica do imunizante. 

“O pedido de autorização para a fase 2a do estudo será submetido à Anvisa após a conclusão das primeiras análises de segurança da vacina no ensaio 1b. Os dados serão avaliados pelo comitê independente de monitoramento do estudo e, depois, enviados à agência reguladora”, diz Verônica. 

Histórico de contribuições 

O Laboratório de Hanseníase do IOC tem um histórico de ações relevantes para o enfrentamento da doença. A unidade foi pioneira na administração da poliquimioterapia no Brasil. Também foi a primeira a adotar o tratamento com 12 doses, tendo realizado estudos que contribuíram para a recomendação desse esquema, atualmente preconizado pela OMS. 

“A realização do ensaio clínico da LepVax em nosso centro reflete bem o grau de maturidade alcançado ao longo de todos esses anos, que permite que hoje tenhamos o reconhecimento da comunidade científica nacional e internacional. É também reflexo do nosso compromisso com políticas voltadas para a qualidade da assistência, atestadas na certificação do Ambulatório Souza Araújo”, ressalta Roberta. 

Uma das contribuições mais recentes do grupo foi o desenvolvimento do kit de diagnóstico NAT-HANS, baseado na detecção do DNA do M. leprae. O produto foi adotado no Sistema Único de Saúde (SUS) e começou a ser distribuído para os Laboratórios Centrais de Saúde Pública (Lacens) no ano passado. 

A inovação foi desenvolvida pelo Laboratório do IOC em parceria com o Instituto Carlos Chagas (Fiocruz-PR) e o Instituto de Biologia Molecular do Paraná (IBMP). 

A liderança do desenvolvimento do Kit NAT-HANS foi do pesquisador Milton Osório Moraes, ex-chefe do Laboratório de Hanseníase, que faleceu em 2022.

O estudo da LepVax no Brasil também era um dos projetos do cientista. Reconhecido internacionalmente como referência na pesquisa em hanseníase, ele foi procurado pelos desenvolvedores da vacina para realizar o ensaio clínico do produto.  

Entre 2019 e 2022, Milton participou da organização da pesquisa no Brasil e da submissão do pedido de autorização à Anvisa.  

“Nesse período, Milton foi diagnosticado com câncer e tivemos a pandemia da Covid-19. Mesmo assim, ele seguiu o projeto da vacina. Sua morte foi uma grande perda para nós e para a ciência, mas ele nos preparou para levar essa pesquisa adiante”, ressalta Verônica. 

Sobre a hanseníase 

A hanseníase atinge a pele e os nervos. A doença costuma provocar inicialmente manchas ou caroços na pele, com alterações de sensibilidade.  

Sem tratamento, a lesão neurológica pode avançar, prejudicando a capacidade de movimento, principalmente nas mãos e nos pés, o que afeta a qualidade de vida e a capacidade de trabalho dos pacientes. As lesões também podem atingir a face, reforçando o estigma, que é mais um dos grandes males do agravo. 

A vacina BCG, produzida com uma versão atenuada da bactéria Mycobacterium bovis, oferece proteção parcial contra a hanseníase e a tuberculose. A OMS recomenda a imunização ao nascer em países com alta carga dessas doenças, como ocorre no Brasil. 

Desde 1981, o tratamento da hanseníase é baseado em uma combinação de antibióticos. A chamada poliquimioterapia cura a infecção e mudou o panorama da doença. Globalmente, os registros caíram 95%. 

Porém, nos últimos anos, especialistas têm chamado atenção para a estagnação na luta contra o agravo. A hanseníase continua provocando novos casos e deformidades permanentes. 

Para mudar esse cenário, a OMS publicou, em 2021, uma nova estratégia contra o agravo, que busca interromper a transmissão da infecção até 2030.  

No Brasil, a doença ainda é considerada um problema de saúde pública, devido ao alto número de casos. 

O enfrentamento do agravo está no alvo do Comitê Interministerial para Eliminação da Tuberculose e Outras Doenças Determinadas Socialmente (CIEDS), instalado em junho.  

Liderado pelo Ministério da Saúde, o grupo conta com representantes de nove pastas para combater agravos negligenciados, muitas vezes associados à pobreza e a outros determinantes sociais. 

Para a hanseníase, as metas incluem a interrupção da transmissão em 99% dos municípios, a eliminação da doença em 75% dos municípios e a redução de 30% do número absoluto de novos casos com incapacidade física aparente no momento do diagnóstico até 2030. 

Segundo os especialistas, para combater a hanseníase, é preciso compromisso com a aplicação das estratégias disponíveis, superando o negligenciamento, e ao mesmo tempo, buscar inovações contra essa infecção tão antiga. 

“Uma vacina eficaz é uma das ferramentas capazes de acelerar o avanço em direção a um futuro sem hanseníase”, destaca Verônica. 

Cooperação internacional 

Liderado pela American Leprosy Missions (ALM), o desenvolvimento da LepVax contou com colaboração de quase 30 instituições de diversos países desde 2002. Além do IOC/Fiocruz, Bio-Manguinhos-Fiocruz e Fiotec, cooperam com o projeto: Access to Advanced Health Institute (AAHI), Aeras, Anesvad, Covance, Damien Foundation, DFnet, Effect Hope, FairMed, German Leprosy and Tuberculosis Relief Association (DAHW), Global Health Innovative Technology Fund (GHIT), H.L. Snyder Medical Foundation, ILEP Federation, Leonard Wood Memorial, Leprosy Relief - Canada, Leprosy Research Initiative, National Hansen's Disease Program, National Institute of Allergy and Infectious Diseases (NIH), P.S. and Ouida Bailey Foundation, Raoul Follereau Foundation, St. Francis Leprosy Guild, Sasakawa Health Foundation, The Leprosy Mission - International, Turing Foundation e Until No Leprosy Remains (NLR). Os doadores que mantêm a ALM também contribuíram para a pesquisa.

Edição: 
Vinicius Ferreira
Raquel Aguiar

Permitida a reprodução sem fins lucrativos do texto desde que citada a fonte (Comunicação / Instituto Oswaldo Cruz)